Precisamos Dominá-la

Nosso desafio é ver na tecnologia tanto os atuais instrumentos de controle dos empregadores quanto as precondições para uma sociedade pós-escassez.

por Peter Frase, na Revista Jacobin, março de 2015

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O Google está nos deixando estúpidos? O Facebook está nos tornando solitários? Os robôs vão roubar nossos empregos? Estas, parece, são ansiedades que afligem muitos hoje.

O Capitalismo é definido pelo impulso de maximização dos lucros, e um dos caminhos mais seguros para esse objetivo tem sempre sido reduzir os custos do trabalho assalariado. Daí a pressão constante para aumentar a produtividade através de novas técnicas de produção, automação, e agora informatização e robotização.

A ansiedade sobre os efeitos da tecnologia capitalista sobre o trabalho é tão antiga quanto o Capitalismo Industrial em si. No folclore, uma das representações mais famosas desta inquietação é a lenda de John Henry [1], um trabalhador ferroviário que morreu tentando atingir a mesma proeza de um martelo à vapor.

Mas agora, as preocupações sobre a obsolescência do trabalhador atingiram um pico febril. A confluência da estagnação salarial, uma recuperação econômica sem empregos, e melhorias rápidas na automação e na inteligência artificial têm alimentado a fornalha do medo do desemprego em massa que tem sempre assombrado as discussões sobre tecnologia.

Projetos de estudos de ampla circulação têm mostrado que até 80% dos empregos atuais são suscetíveis de automação no futuro próximo [2]. Parte disso é uma hipérbole, mas está claro que a automação está saindo da fábrica e entrando no reino de intelectuais e escritores – exatamente as pessoas responsáveis por produzirem muito da literatura de técno-ceticismo. (Daí o apelo acanhado do escritor Kevin Drum no Mother Jones: “Olá, Mestres Robôs. Por favor, não nos demitam?“ [3])

O movimento socialista, e o Marxismo em particular, tem uma relação complicada com as ferramentas de produção capitalista. Nosso desafio é ver no desenvolvimento técnico do Capitalismo tanto os atuais instrumentos de controle dos empregadores e as precondições para um futuro de pós-escassez.

O discurso dominante tende na direção de uma visão simplista de que a Tecnologia é uma coisa que você pode ser a favor ou contra; talvez algo que possa ser usado de uma forma ética ou antiética. Mas a tecnologia no processo de trabalho, assim como o capital, não é uma coisa mas uma relação social. Tecnologias são desenvolvidas e introduzidas no contexto da batalha entre capital e trabalho, e elas mascaram as vitórias, derrotas e compromissos dessas lutas. Quando os termos do debate mudam das relações de produção para uma “tecnologia” reificada [4], isso se dá para o benefício dos chefes.

Tome, por exemplo, a greve de 2013 dos trabalhadores de transporte de São Francisco. Os trens BART de São Francisco servem a muitos das elites do Vale do Silício, que desafogaram suas frustrações em sofrerem um inconveniente graças a uma ação trabalhista. No processo, eles tentaram [5] pintar a greve como uma discussão sobre os méritos da tecnologia: os trabalhadores estariam supostamente resistindo à introdução de tecnologias de economia de tempo e de trabalho no sistema de trânsito.

O sindicato, entretanto, via as coisas de forma diferente. As regras do espaço de trabalho que eles estavam tentando preservar eram amplamente desvinculadas da implementação de novas tecnologias, e tinham mais a ver com coisas como “prevenir a administração do BART de fazer atribuições de trabalho punitivas contra empregados que preencheram reclamações sobre o ambiente de trabalho.”

A questão, então, se torna como incorporar a tecnologia no pensamento social e na estratégia política sem tratá-la como externa às relações sociais ou cair na dicotomia crua de técno-utópicos versus técno-céticos, e durante todo tempo reconhecendo que as mediações técnicas de trabalho e capital possuem sim alguma existência relativamente autônoma. Às vezes lutas políticas se voltam para o uso de certas tecnologias, mas elas nunca são apenas sobre aquelas tecnologias; elas são, em última análise, sobre o equilíbrio de poder de classe. O que é preciso pode ser chamado de “ludismo iluminado,” se aquele termo puder de fato ser reclamado.

Os luditas [6] eram artesãos ingleses do século XIX conhecidos por destruir maquinaria de economia de trabalho. Hoje, seu nome simboliza ou resistência heróica contra máquinas repressivas, ou ódio intransigente de todo progresso tecnológico.

Não surpreende que a “Fundação Tecnologia da Informação e Inovação”, um think tank financiado por gente como Google e IBM, conceda seu “Troféu Ludita” para aqueles que eles julgam insuficientemente pró-tecnologia; o relatório do prêmio de 2014 [7] denuncia regulação hoteleira e rejeita preocupações sobre privacidade em registros sobre saúde.

Os luditas originais são similarmente incompreendidos. Como o historiador marxista Eric Hobsbawm [8] escreveu em um artigo de 1952, a quebradeira de maquinário era uma tática comum de resistência trabalhista durante a Revolução Industrial. Ao invés de dirigirem sua fúria contra a tecnologia em si, os trabalhadores quebravam as máquinas “como um meio de coagir os empregadores a garantir a eles concessões em relação a salários e outras questões.” Tal sabotagem “era dirigida não apenas contra máquinas, mas também contra matérias-primas, produtos finalizados, e mesmo propriedade privada dos empregadores.”

A figura moderna do ludita é valiosa para Capitalistas e suas ideologias por razões retóricas primárias: se trabalhadores podem ser retratados como hostis a algum método ou dispositivo que possui qualidades manifestamente positivas, eles podem ser repudiados como egoístas ou irracionais. Não importa que em muitos casos, o problema seja que tecnologias úteis e potencialmente emancipatórias são capturadas dentro da carapaça capitalista, otimizadas para maximizar lucros privados ao invés da riqueza social.

Isso não quer dizer que os argumentos dos titãs tecnológicos não são lógicos em seus próprios termos. Do ponto de vista do Capital, não há muita diferença entre sabotagem de máquinas e outras formas de ação trabalhista. Para o proprietário das máquinas, afinal de contas, seu valor não está na coisa específica que elas produzem, mas em quanto dinheiro elas dão em retorno. Uma máquina é apenas parte do mais importante processo de produção capitalista de todos: M-C-M’, o método de transformar dinheiro em mais dinheiro ao passá-lo através do processo de contratar trabalhadores, produzir e vender.

Tão logo uma máquina é comprada, ela custa dinheiro ao seu proprietário: empréstimos precisam ser pagos, instalações físicas começam a se deteriorar e novas máquinas ameaçam constantemente tornar as já existentes competitivamente inutilizáveis. Portanto, qualquer coisa que desacelere ou pare a produção tem o efeito de destruir algo do valor da máquina como capital, o que para o Capitalista é sua substância real. Se for uma greve de braços cruzados [9] ou uma chave inglesa que pare a produção é irrelevante, já que em ambos os casos valor é destruído. Para os proprietários, toda resistência de trabalhadores é Ludismo.

A hostilidade para com novas tecnologias, a suspeita em relação a toda “inovação” como uma trama capitalista, tem uma lógica para os Trabalho organizado, se bem que uma de visão curta. Os luditas são frequentemente invocados como um talismã contra toda crítica à tecnologia, um aviso de que é impossível resistir à inevitável marcha do progresso. Isso mistifica as questões políticas do progresso ao drenar dele seu conflito e elementos políticos. Mas se a resistência dos trabalhadores não somar mais do que parar na frente de mudanças técnicas gritando “PARE!”, ela só pode preservar um status quo completamente capitalista.

Esquerdismo anti-tecnológico coloca os trabalhadores como conservadores intransigentes, se agarrando a tecnologias existentes que – se a crise do trabalho industrial nos dias de pleno emprego dos anos 60 e 70 for alguma indicação – não são particularmente amadas. A fabricação industrial que alguns agora querem preservar já foi considerada uma imposição monstruosa sobre as prerrogativas do trabalho que exigia habilidades manuais [10]. Além disso, a resistência à tecnologia encoraja a fragmentação, colocando trabalhadores contra consumidores, que apreciam o acesso à riqueza social tornada possível pelo desenvolvimento capitalista.

Uma estratégia alternativa a resistir à tecnologia atual seria lidar com questões de poder de classe e distribuição. Alguns dos primeiros socialistas nos EUA a confrontar diretamente esta dinâmica foram trabalhadores comunistas da indústria automobilística em Detroit, lutando com o impacto da robotização. Nelson Peery, um trabalhador radical da “Liga de Trabalhadores Negros Revolucionários” [11], via a automação como um processo que tornaria velhas formas de organização industrial irrelevantes e anunciaria um novo estágio da luta de classes.

É claro, a maioria dos trabalhadores do setor automobilístico ficou sem empregos de altos salários nem uma fatia crescente na riqueza social, enquanto a reestruturação da indústria e a des-sindicalização avançaram lado a lado com o desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social Keynesiano.

Então o que significaria lutar por direitos sociais em uma estrutura que vai além da nostalgia industrial? O caso do Sindicato dos Estivadores da Costa Oeste [12] fornece um exemplo ilustrativo, tanto de possibilidades quanto de limites.

Confrontado com a automação e conteinerização dos portos e o concomitante colapso na demanda por trabalho iniciada nos anos 60, o sindicato portuário conquistou um acordo [13]. Como o repórter sobre sindicatos no New York Times Steven Greenhouse relembra: “A administração prometeu a todos os estivadores um nível garantido de pagamento, mesmo se não houvesse trabalho para todos.” Os termos reais do acordo e o contexto em que ele foi atingido estavam longe de ideais, mas demandas como estas ressaltam a necessidade de esculpir um pedacinho de pós-escassez dentro de um mundo Capitalista.

Trabalhadores das docas, é claro, não generalizam bem a classe trabalhadora mais ampla. Por causa de sua posição estratégica em gargalos da distribuição de mercadorias, e sua resultante habilidade de travar partes enormes da economia, eles desfrutam de uma alavanca estratégica da qual a maioria de nós carece. Além disso, eles foram em última análise incapazes de proteger a sua bolha e tem sofrido uma série de derrotas decentes. Conquistar uma parcela dos frutos da automação para o resto de nós requer vitórias no nível do Estado ao invés de ambientes de trabalho individuais.

Isto poderia ser feito através de uma Renda Básica Universal, um pagamento mínimo garantido a todos os cidadãos completamente independente de trabalho. Se levada em frente por forças progressistas, a RBU [14] seria uma reforma não-reformista que iria também acelerar a automação ao fazer as máquinas mais competitivas contra trabalhadores melhor posicionados para rejeitar salários baixos. Isso facilitaria também a organização sindical ao agir também como um tipo de “fundo de greve” e amortecedor contra a ameaça de desemprego.

Uma renda básica universal poderia defender os trabalhadores e realizar o potencial de uma economia pós-escassez altamente desenvolvida; poderia quebrar a falsa escolha entre trabalhadores bem-pagos ou máquinas de economia de trabalho, sindicatos fortes ou avanço tecnológico.

A força dos trabalhadores e o desenvolvimento das forças de produção, afinal de contas, estão dialeticamente entrelaçados. Deixando de lado a falação esbaforida sobre robôs, o crescimento da produtividade nos anos recentes tem de fato estado em baixas históricas, levando alguns comentaristas a advertir sobre uma “grande estagnação” [15] .

Uma forma de explicar isso é que quando os trabalhadores são baratos e controláveis, é mais fácil para o chefe tratar o trabalhador mesmo como uma máquina do que encontrar uma máquina para substituí-lo. Assim, o fortalecimento da classe trabalhadora tanto dentro quanto fora do ambiente de trabalho se torna a força que nos empurra rumo ao ideal utópico de uma sociedade pós-escassez e a abolição do trabalho assalariado.

Tradução: Everton Lourenço


Leituras Relacionadas

  • Quatro Futuros – “Uma coisa de que podemos ter certeza é que o Capitalismo vai acabar; a questão, então, é o que virá depois.” – também de Peter Frase: O texto tenta imaginar as possibilidades de futuro após o fim da produção de mercadorias através de trabalho assalariado e, com isso, do Capitalismo – partindo dos avanços tecnológicos atuais (como a robotização, informatização, impressoras 3D), das futuras condições materiais (escassez ou abundância de recursos e fontes de energia) e políticas (mais igualdade ou mais hierarquia, dependendo do sucesso ou do fracasso das Esquerdas em domar as tendências atuais de concentração de poder) e de uma pitada de ficção científica. O texto teve bastante repercussão na internet e fez com que o autor fosse convidado a expandir as ideias dele em um livro que deve ser lançado ainda esse ano nos Estados Unidos – “Four Futures: Life After Capitalism” (“Quatro Futuros: vida após o Capitalismo”).
  • Tecnologia e Estratégia Socialista – Com poderosos movimentos de classe em sua retaguarda, a tecnologia pode prometer a emancipação do trabalho, ao invés de mais miséria.
  • Robôs e Inteligência Artificial: Utopia ou Distopia? – “Diz muito sobre o momento atual que enquanto encaramos um futuro que pode se assemelhar ou com uma distopia hiper-capitalista ou com um paraíso socialista, a segunda opção não seja nem mencionada.”
  • Inovação Vermelha – “Longe de sufocar a inovação, uma sociedade Socialista colocaria o progresso tecnológico a serviço das pessoas comuns.
  • Todo poder aos “Espaços de Fazedores” – “A impressão 3-D em sua forma atual pode ser um retorno às obrigações enfadonhas do movimento “pequeno é belo”, mas tem o potencial para fazer muito mais.
  • A gente trabalha demais, mas não precisa ser assim – “Entre os séculos XIX e XX os trabalhadores conquistaram o dia de trabalho de 10 horas e então o de 8 horas, mas depois da Grande Depressão a tendência parou. Do que precisaríamos para recuperar nosso tempo livre?”
  • Políticas para se ‘Arranjar Uma Vida’ – “O trabalho em uma sociedade capitalista é um fenômeno conflituoso e contraditório. Uma política para a classe trabalhadora tem de ser contra o trabalho, apelando para o prazer e o desejo, ao invés de sacrifício e auto-negação.
  • O Socialismo Vai Ser Chato? – “O Socialismo não é sobre induzir uma branda mediocridade. É sobre libertar o potencial criativo de todos.
  • Um mundo Socialista não significaria só uma crise ambiental maior ainda? – “Sob o Socialismo, nós tomaríamos decisões sobre o uso de recursos democraticamente, levando em consideração necessidades e valores humanos, ao invés da maximização dos lucros.
  • Robôs, Crescimento e Desigualdade

Notas

[1] http://americanfolklore.net/folklore/2010/07/john_henry.html

[2] http://robotenomics.com/2014/04/16/study-indicates-robots-could-replace-80-of-jobs/

[3] http://www.motherjones.com/media/2013/05/robots-artificial-intelligence-jobs-automation

[4] ‘Reificação’, dentro do pensamento marxista, é um processo ideológico pelo qual uma relação entre pessoas passa a ser mascarada como se fosse entre ‘coisas’, se perde a dimensão social e política daquela relação : https://pt.wikipedia.org/wiki/Reifica%C3%A7%C3%A3o_(marxismo)

[5] https://www.jacobinmag.com/2013/10/delusions-of-the-tech-bro-intelligentsia/

[6] http://www.britannica.com/EBchecked/topic/350725/Luddite

[7] https://itif.org/publications/2015/01/05/2014-itif-luddite-awards

[8] https://www.youtube.com/watch?v=Nnd2Pu9NNPw

[9] https://libcom.org/history/flint-sit-down-strike-1936-1937-jeremy-brecher

[10] No original, “craft work”

[11] https://www.jacobinmag.com/2014/07/when-the-unions-the-enemy/

[12] https://www.jacobinmag.com/2014/08/unions-that-used-to-strike/

[13] http://www.nytimes.com/2002/10/06/weekinreview/the-nation-the-100000-longshoreman-a-union-wins-the-global-game.html?_r=0

[14] No original, “UBI” (“universal basic income”)

[15] https://books.google.com.br/books/about/The_Great_Stagnation.html?id=Aq7-tgAACAAJ&redir_esc=y&hl=pt-BR

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