Nossa natureza compartilhada na verdade nos ajuda a construir e definir os valores de uma sociedade mais justa.
por Adaner Usmani & Bhaskar Sunkara, na Revista Jacobin, abril de 2016
Ilustração: Phil Wrigglesworth | Jacobin
“Bom na teoria, ruim na prática.” Quem declara interesse no Socialismo e na ideia de uma sociedade sem exploração e hierarquia recebe frequentemente essa resposta desdenhosa. Legal, o conceito soa bem, mas as pessoas não são muito gentis, certo? O Capitalismo não é mais adequado à natureza humana – uma natureza dominada por competitividade e corrupção?
Socialistas não acreditam nesses lugares-comuns. Eles não veem a História como uma mera crônica de crueldade e egoísmo. Eles também veem incontáveis atos de empatia, reciprocidade, e amor. As pessoas são complexas: elas fazem coisas indescritíveis, mas também se envolvem em atos notáveis de bondade e, mesmo em situações difíceis, mostram profunda consideração pelos outros.
Isso não significa que nós somos “elásticos” – que não existe algo como uma “natureza humana.” Progressistas às vezes fazem essa afirmação, muitas vezes discutindo com aqueles que veem pessoas como máquinas de “maximização de utilidade” [1] que andam e falam. Apesar da boa intenção, essa acusação vai longe demais.
Por pelo menos duas razões, Socialistas estão comprometidos com a visão de que todos os humanos compartilham alguns interesses importantes. A primeira é moral. As acusaçõe dos socialistas sobre como as sociedades de hoje falham em prover necessidades básicas como comida e abrigo em um mundo de abundância, ou bloqueiam o desenvolvimento de pessoas presas em empregos ingratos, fatigantes e mal pagos, estão baseadas em uma crença central (declarada ou não) sobre os impulsos e interesses que animam as pessoas em todos os lugares.
Nossa indignação com que se negue a indivíduos o direito de ter vidas livres e satisfatórias está ancorada na ideia de que as pessoas são inerentemente criativas e curiosas, e que o Capitalismo muito frequentemente asfixia estas qualidades. Para simplificar, nós lutamos por um mundo mais livre e mais satisfatório por que todo mundo, em todos os lugares, se preocupa com sua liberdade e satisfação.
Mas esta não é a única razão por que socialistas se interessam pelas motivações universais da humanidade. Ter um conceito de “natureza humana” também nos ajuda a encontrar sentido no mundo que nos rodeia. E nos ajudando a interpretar o mundo, ele auxilia em nossos esforços para mudá-lo também.
Em um trecho famoso Marx diz que “a história de todas as sociedades até aqui tem sido a história da luta de classes.” [2] Resistência à exploração e opressão é uma constante através da História – é tão parte da natureza humana quanto competitividade, ou ganância. O mundo que nos cerca está cheio de exemplos de pessoas defendendo suas vidas e dignidade. E enquanto estruturas sociais podem moldar e restringir a ação individual, não existem estruturas que passem o rolo compressor sobre direitos e liberdades das pessoas sem despertar resistência.
É claro, a história de “todas as sociedades até aqui” é também uma coleção de relatos de passividade e mesmo aquiescência. A ação coletiva de massa contra a exploração e opressão é rara. Se humanos por todos os lados estão comprometidos com a defesa de seus interesses individuais, por que nós não resistimos mais?
Bem, a visão de que todas as pessoas têm incentivos para exigir liberdade e satisfação não implica que elas sempre terão a capacidade para fazer isso. Mudar o mundo não é uma tarefa fácil. Sob condições normais, os riscos associados com agir coletivamente muitas vezes parecem esmagadores.
Por exemplo, trabalhadores que escolhem se associar a um sindicato ou entrar em greve para melhorar suas condições de trabalho podem despertar perseguições por seus chefes ou mesmo perder seus empregos. A ação coletiva [3] requer que muitos indivíduos diferentes decidam assumir esses riscos juntos, então não é surpreendente que isso seja incomum e mesmo que dure pouco.
Colocando de outra maneira, socialistas não acreditam que a ausência de movimentos de massa seja um sinal de que as pessoas em geral não tenham desejos inerentes de contra-atacar, ou pior, que elas nem mesmo reconhecem quais são seus interesses. Ao invés disso, protestos são incomuns porque as pessoas são espertas. Elas sabem que no atual momento político a mudança é uma esperança distante e arriscada, então elas desenvolvem outras estratégias para se virar.
Mas às vezes as pessoas se levantam e assumem riscos. Elas se organizam e constroem movimentos progressistas populares. A história está repleta de exemplos [4] de pessoas lutando contra a exploração, e uma de nossas principais tarefas como socialistas é apoiar esses movimentos, para ajudar a fazer da ação coletiva uma escolha viável para ainda mais pessoas.
Nesse esforço – e na luta para definir os valores de uma sociedade mais justa – nós seremos auxiliados, não atrapalhados, pela nossa natureza compartilhada.
Tradução: Everton Lourenço
Ilustração: Phil Wrigglesworth | Jacobin
Nossa natureza compartilhada na verdade nos ajuda a construir e definir os valores de uma sociedade mais justa.
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Notas:
[1] A ideia de “Maximização de Utilidade” é parte das teorias econômicas da linha “Neoclássica” segundo as quais o ser humano seria um agente capaz de procurar racionalmente, em todas as situações, o que é melhor para si, aumentando o seu prazer e/ou diminuindo o seu sofrimento. É muito comum a crítica a esse tipo de visão na Esquerda e na Centro-Esquerda. Uma crítica simplificada a esse conceito de “atividades racionais” pode ser vista no capítulo 5, “Os personagens do drama: Quem são os atores econômicos?” do livro “Economia: Modo de Usar”, de Ha-Joon Chang. [N.M.]
[2] O Manifesto do Partido Comunista – Karl Marx e Friedrich Engels – Capítulo 1. – https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/cap1.htm [N.M.]
[3] https://www.jacobinmag.com/2015/07/palmer-marx-precarity-class-struggle/
[4] https://www.jacobinmag.com/2015/03/eric-foner-interview-reconstruction-slavery/