Os socialistas querem tornar todos iguais? Querem acabar com a nossa individualidade?

O componente igualitário do comunismo refere-se exclusivamente às oportunidades sociais reais que a sociedade deve oferecer a todos e a cada um dos indivíduos para o desenvolvimento da sua personalidade. O que os comunistas defendem é a igualdade social, justamente para que todos e cada um dos indivíduos possam desenvolver as suas características pessoais sem obstáculos e constrangimentos.

por José Paulo Netto

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Diz-se que o comunismo quer tornar “iguais” todas as pessoas – na realidade, é generalizada a ideia segundo a qual o projeto comunista é a proposta de uma sociedade onde reine uma igualdade total. É compreensível, frente a esta noção, que as pessoas alimentem sérias reservas em face do projeto comunista. Afinal, uma sociedade onde todos sejam absolutamente iguais, idênticos, deve ser (seguramente é) o império do tédio; e, depois, as desigualdades entre os homens são tão constantes na história que o senso comum as considera como eternas e inelimináveis.

Teremos ocasião, mais adiante, de precisar com mais cuidado o conteúdo do projeto comunista. Mas, desde já, é necessário afirmar que o componente igualitário do comunismo refere-se exclusivamente às oportunidades sociais reais que a sociedade deve oferecer a todos e a cada um dos indivíduos para o desenvolvimento da sua personalidade. A igualdade que está na base do comunismo não tem nada a ver com um eventual projeto de sociedade centrado na identidade entre as pessoas: o que os comunistas defendem é a igualdade social, justamente para que todos e cada um dos indivíduos possam desenvolver as suas características pessoais sem obstáculos e constrangimentos. No que se relaciona a este problema, os textos de Marx – o fundador do comunismo – são nítidos e cristalinos, não deixando qualquer margem para dúvidas: a igualdade social é apenas o pressuposto para o livre desenvolvimento dos indivíduos.

No entanto o senso comum não só confunde igualdade com identidade como está convencido de que a própria proposta de igualdade social é inviável, uma vez que precisamente a desigualdade parece algo presente ao longo de toda a história da humanidade. Isto é um equívoco.

Há toda uma série de indicações (antropológicas e históricas) que permite afirmar, com muita segurança, que as desigualdades sociais entre os homens nem sempre existiram. Pesquisas dignas de crédito sugerem que as desigualdades sociais começaram a aparecer no interior da sociedade humana a partir de um certo nível do seu desenvolvimento – e, desde então, converteram-se num traço constante da organização social dos homens.

As hipóteses mais plausíveis são aquelas que sustentam que tais desigualdades surgiram quando os grupos humanos transitaram do estágio do nomadismo (no qual organizaram em tribos e clãs, sem se fixarem em áreas determinadas) para a vida sedentária (ou seja: localizada num território preciso). O sedentarismo, concomitantemente à agricultura e ao pastoreio, representou uma verdadeira mudança de qualidade na organização social dos homens. Nos seus desdobramentos, ele veio criar as condições para a dissolução da forma inicial dos grupos humanos, que desconheciam a propriedade privada dos meios essenciais para a sobrevivência (terras, mananciais, rebanhos, etc.). Aos poucos, desapareceu a chamada comunidade primitiva, no seio da qual reinava a igualdade.

Essa igualdade, marca singular dos estágios iniciais da organização social dos homens, não deve ser idealizada. Ela era uma decorrência do baixo nível de desenvolvimento dos grupos humanos, da sua impotência ante os fenômenos da natureza, da sua falta de controle sobre o meio-ambiente. Fundamentalmente, ela resultava da miséria objetiva em que viviam os homens: somente a apropriação coletiva dos pouquíssimos recursos e bens permitia a sua sobrevivência e reprodução.

A dissolução da comunidade original, baseada nesse comunismo grosseiro (ou “comunismo primitivo”), foi um importante progresso na história humana. Tornando-se possível, pela agricultura e, pelo pastoreio, reduzir a miséria objetiva e produzir bens em maior quantidade, a sociedade se fraturou: no seu interior, alguns grupos de homens – evidentemente pelo uso da força – começaram a concentrar riqueza e poder em detrimento da maioria. Gradualmente, esse poder e essa riqueza (expressos na posse de propriedades privadas e instrumentos de guerra) foram-se consolidando e introduziram hierarquias na sociedade, instaurando várias ordens de desigualdades sociais. Essa diferenciação no interior da sociedade humana, cobrindo uma larga etapa histórica, está na origem das organizações sociais que conhecemos como sociedades divididas por interesses antagônicos de grupos de homens – e, no fundo, o que passou a decidir a posição dos homens na hierarquia social é o serem ou não proprietários de recursos e bens essenciais para a produção e a reprodução da sociedade. Desde então, boa parte da sorte das pessoas passou a depender de possuírem ou não uma propriedade desse tipo.

Naturalmente, tal diferenciação foi um processo nada idílico, cujo motor residiu sempre na violência. A partir dele, as sociedades humanas perderam aquele primitivo caráter comunitário, passando a se desenvolver segundo a lógica das lutas entre uns poucos possuidores e a massa dos despossuídos (lutas entre homens livres e escravos, patrícios e plebeus, nobres e servos). Sob formas e com conteúdos diversos, esse corte antagônico entre proprietários (que, detendo o poder, exploram e oprimem) e não-proprietários (frequentemente explorados e oprimidos) veio reproduzindo-se, da Antiguidade aos nossos dias, nos vários tipos de organização social que se sucederam, pelo menos no Ocidente – a escravista, a feudal e a burguesa moderna (capitalista).

As desigualdades sociais – derivadas, essencial mas não exclusivamente, da relação de propriedade – que acompanham a evolução dos homens desde a dissolução da comunidade primitiva não devem ser julgadas moralmente (ainda que o julgamento moral seja importante). Elas devem ser observadas enquanto fatos históricos; e, como fatos históricos, têm funções diferentes no tempo e aspectos simultaneamente progressistas e negativos.

Quando do seu aparecimento, por mais brutal que esse tenha sido, a diferenciação entre os poucos poderosos e ricos e as massas subordinadas e pobres foi um evento que beneficiou o desenvolvimento da humanidade. A concentração da riqueza social – ela mesma ainda em níveis muito baixos – em poucas mãos liberou alguns grupos de homens da luta imediata pela sobrevivência, os quais puderam dedicar-se a atividades crescentemente espirituais – notadamente a magia (que, posteriormente, daria origem à religião, à filosofia, à ciência e à arte). De uma forma ou de outra, os conhecimentos produzidos nessas atividades acabaram por penetrar na vida cotidiana, interferindo positivamente nas condições de geração de riquezas sociais.

As mesmo tempo, esse processo de diferenciação social foi criando as bases para a diversificação e o desenvolvimento de qualidades humanas especificas. Em face da comunidade primitiva, praticamente não se pode falar de pessoas ou indivíduos: as miseráveis condições de vida impunham um gregarismo, um coletivismo que não permitia que alguns homens se destacassem duradouramente entre outros; nela, é quase certo que a igualdade social equivalia à identidade entre os homens. O indivíduo humano – particularizado pela sua personalidade – ainda não se diferenciava no interior do gênero humano. Precisamente o aparecimento das desigualdades sociais possibilitou que alguns representantes do gênero humano desenvolvessem atividades que redundaram em atributos (políticos, estéticos, científicos, filosóficos) que os individualizaram e que, ulteriormente, tornaram-se qualidades próprias do que se chama de essência humana. Esta, é claro, não é algo dado para todo o sempre, imutável; é um conjunto de possibilidades (o trabalho criador, a socialidade, a consciência, a liberdade) que humaniza os homens e se constrói na história.

A evolução que estamos esquematizando em tão curtas linhas é paradoxal: o surgimento das desigualdades sociais, propiciando a opressão e a exploração de grandes massas por um punhado de ricos e poderosos, também criou condições para o crescimento da riqueza social e das personalidades humanas. Este paradoxo, contudo, era necessário, dados os baixos patamares em que se encontrava o desenvolvimento da sociedade; e essa característica contraditória dos processos sociais (o progresso se realizando a custos humanos muito grandes) será permanente em todas as sociedades divididas por antagonismos de grupos.

Na verdade, só muito mais tarde é que esse caráter antagônico pôde ser eliminado. Até finais do século XVIII e meados do século XIX, quando a revolução industrial criou as condições para a produção massiva de bens e potenciou a riqueza social, aquele paradoxo era insanável. Como teremos oportunidade de verificar, com a revolução industrial, e o coroamento da revolução burguesa que lhe é estreitamente vinculado, todo o quadro do desenvolvimento social se alterou. Antes, porém, as desigualdades sociais foram a condição necessária para todo o progresso material e espiritual – a grandeza da civilização grega e da sua filosofia, por exemplo, são impensáveis sem a existência da escravatura.

Nesse processo, o aspecto que nos interessa realçar é o da relação entre desigualdades sociais e diferenças individuais.

Sabemos que os homens são diferentes: é praticamente impossível encontrar um que seja idêntico a outro. Os homens, na sua evolução histórica, tornaram-se indivíduos irrepetíveis, que se distinguem entre si por características intelectuais (talento, criatividade), morais (generosidade, combatividade) e inclusive pela combinação original de traços físicos. E sabemos, também, que os pressupostos para o desenvolvimento dos homens são os mesmos para todos eles; ou seja, sabemos que os homens são iguais – pretos e brancos, europeus e asiáticos, nórdicos e tropicais. Estes são os dados da ciência moderna: os homens têm em comum um denominador que os torna fundamentalmente iguais entre si (constituem o gênero humano); mas combinam as qualidades que esse gênero desenvolveu na história (a essência humana) de modo diferencial e peculiar e, por isso, são indivíduos diferentes (têm personalidade própria e singular). A igualdade básica de todos os homens não quer dizer que sejam idênticos: significa que, submetidos às mesmas circunstâncias, tem igual possibilidade de desenvolver a sua personalidade.

Ora, o fato histórico de esse desenvolvimento ter sido originalmente propiciado pelas desigualdades sociais criou a base para a mistificadora tese de que elas são causadas pela diferenciação entre os indivíduos. A partir daí, pôde ter curso não só a ideia de que há uma relação necessária e eterna entre desigualdade social e diferenciação individual como, ainda, de que os “superiores” na hierarquia social estariam nessa situação porque seriam também “superiores” em termos de capacidade, talento, etc. Nas ideologias racistas, essa ideia é levada ao seu limite mais extremo: como os brancos (os colonialistas europeus) dominaram por séculos a Ásia e a África, “deduz-se” que isto se deve à sua “capacidade inata” – logo, amarelos e negros seriam “menos capazes”, “inferiores” (na mesma ótica se inserem os delírios nazistas acerca da “superioridade da raça ariana”). Essas idéias não resistem à menor análise racional – e, se se mantém, é porque servem a interesses muito particulares de opressão e exploração. Os atributos humanos do homem nada têm a ver com suas características físicas e biológicas; são atributos sociais (que, obviamente, supõem a existência de um ser natural, orgânico, vivo).

Se, quando se dissolve a comunidade primitiva, a luta contra as desigualdades sociais estava condenada ao fracasso porque elas eram necessárias e funcionais para a diferenciação dos indivíduos e o progresso do gênero, para o próprio florescimento das diferenças individuais, hoje a situação é totalmente diversa. Pelo menos desde meados do século XIX, a luta contra as desigualdades sociais é a luta para que todos os homens possam desenvolver, plena e diferencialmente, as suas personalidades.

Atualmente, pugnar pela supressão das desigualdades sociais – pugna que é um dos traços característicos do projeto comunista – equivale a lutar por uma sociedade onde todos os homens tenham acesso a oportunidades reais iguais de desenvolvimento. E isto não para fazer que eles se tornem idênticos, mas para que possam explicitar e objetivar as diferenças que os particularizam.

Trata-se, hoje, entre outras grandes transformações, de fazer com que o desenvolvimento dos indivíduos não seja contraditório em relação ao desenvolvimento do gênero humano – numa palavra, trata-se de lutar por uma nova comunidade humana. Esta proposta humanista é a moldura na qual se insere o ideal ético do movimento comunista.

José Paulo Netto, 1986, “O que todo cidadão precisa saber sobre o Comunismo”

Capítulo 1 – “Comunismo, desigualdades sociais e diferenças individuais”

Editora Brasiliense

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