Bill Gates, Socialista? [1]

Bill Gates está certo: o setor privado está sufocando a inovação em energias limpas. Mas esse não é o único lugar em que o Capitalismo está nos limitando.

por Leigh Phillips, na Revista Jacobin, dezembro de 2015

Bill Gates, o titã da tecnologia original e homem mais rico no mundo, anda por aí dizendo para praticamente qualquer um que o ouvir que o Livre-Mercado é terrível para a inovação.

Parece que tudo começou em 2010, quando ele reclamou para as plateias do TED Talks [2] sobre os “níveis ridiculamente baixos” de gastos governamentais em pesquisas básicas em energias renováveis, uma frase que ele vem repetindo em vários locais.

Então em junho deste ano, Gates deu uma longa e surpreendente entrevista para o Financial Times [3] em que disse não uma vez mas repetidamente que é o setor público, não as companhias privadas por si mesmas, que vai conduzir uma mudança global para uma economia de energias-limpas, e que com quanto ele ame filantropia, isso não é substituição para a taxação como um mecanismo para gerar redistribuição de riquezas.

Em meio à discussão dos tipos de projetos de inovação em energia verde que mais o excitavam – energia nuclear reciclada de Urânio empobrecido, pipas de grandes altitudes ou “kytoons”, e turbinas voadoras captando o poder constante do vento das correntes altas – ele contou ao reporter do FT como no setor de energia, assim como no setor da saúde, existem áreas de pesquisa que tem um potencial interessante para ajudar a humanidade mas que não oferecem retorno financeiro. O setor público, entretanto, pode tomar a visão de longo-prazo e assim “os orçamentos governamentais de pesquisa e desenvolvimento devem ser aumentados nesse espaço.”

Ele chegou a dizer como foi o “setor público que estava lá no início” nas tecnologias digitais, na Internet, nos transportes. Isso é certamente verdade. Se ele não tem lido Marx, certamente parece ter lido o livro “O Estado Empreendedor: Desmascarando o mito do setor público vs. setor privado” [4], da economista Keynesiana de inovação Mariana Mazzucato, um campeão de vendas entre os frequentadores de cúpulas e encontros, que oferece uma série de casos de estudo desde biotecnologia, passando pela indústria farmacêutica até microcomputadores, e que mostra como historicamente tem sido o setor público quem faz os investimentos de alto-risco em novas tecnologias muito antes do setor privado estar confiante o bastante para entrar com seu dinheiro.

A razão é simples: empresas são muito avessas ao risco para investir na ausência de algo garantido. As amplas evidências que ela reuniu demonstram que, ao contrário da crença popular, é mais frequentemente o Estado quem pavimenta o caminho com inovações, não os capitães dos negócios. Ela clama por gastos públicos “orientados por missões” em projetos como o vôo à Lua para arrancar a humanidade do atual deserto de inovações.

“Por que há tanta incerteza e existem tantos caminhos diferentes,”, Gates continuou, ecoando a tése de Mazzucato, “deveria ser como no Projeto Manhattan e o Projeto Apollo no sentido de que o governo deveria investir expressivas quantidades de pesquisa e desenvolvimento.”

Alguns dias depois, em um post em seu blog [5], Gates expandiu seu argumento:

“Por que os governos deveriam financiar a pesquisa básica? Pela mesma razão que as companhias tendem a não fazer isso: por que é um bem público. Os benefícios para a sociedade são muito maiores que a quantia que o inventor pode captar. Um dos melhores exemplos disso é a criação da Internet. Ela levou a inovações que continuam a mudar nossas vidas, mas nenhuma das companhias que fornecem essas inovações nunca poderiam a ter construído.”

Em novembro ele disse ao Atlantic, novamente no tema da pesquisa em energias verdes: “Sim, o governo será um tanto inepto. Mas o setor privado é em geral inepto. Quantas companhias em que os capitalistas de risco investem que vão mal? De longe a maioria delas.”

Tudo isso culminou na grande revelação no começo do mês durante as discussões das Nações Unidas sobre o clima em Paris, onde Gates e líderes dos negócios como Mark Zuckerberg do Facebook e Jeff Bezos do Amazon estavam lá para os anúncios gêmeos da “Missão Inovação” [6] – um compromisso de 21 países incluindo Reino Unido, EUA, China, India e México para dobrar os gastos públicos em pesquisa de energias limpas no final da década; e a “Breakthrough Energy Coalition” [7], um grupo de empresas e fundações que pretendem “dar suporte para companhias tirando ideias inovadoras em energia-limpa dos laboratórios para levar ao Mercado.”

Gates, a cabeça por trás de ambos os esforços, novamente usou seu blog [8] para tratar do seu pensamento por trás deles, postando um documento de nove páginas [9] que detalha sobre como “programas de pesquisa financiados pelos governos tem produzido muitas das inovações que definem a vida moderna,” e estende o argumento sobre o por que a Falha de Mercado no setor de energia é particularmente ruim. Enquanto companhias farmacêuticas investem 20% de seus ganhos em pesquisa e companhias de IT investem 15%, companhias de energia gastam 0.23%.

Isso é por que, ele diz, enquanto a maioria das companhias sabe dentro de poucos anos se uma inovação particular se pagará, no setor energético pode demorar décadas para saber se o dinheiro da pesquisa resultará em ganhos incríveis por que demora muito pra se adotar novas tecnologias de energia. “É por isso que governos desempenham um papel indispensável no suporte de pesquisas em energia.”

Ainda assim Gates “e seus amigos bilionários” levaram porrada no the Guardian dos escritores progressistas Martin Lukacs e Rajiv Sikora [10]. Eles zombam, dizendo que não precisamos de nenhuma nova tecnologia, que nós só precisamos de mais cooperativas de pequena escala e de propriedade local de energia eólica e solar, como existem na Alemanha e Dinamarca. Gates só quer “que os governos criem o alicerce para uma nova fronteira de ‘lucros-verdes’,” em “remendos climáticos” como captura e armazenamento de carbono (CCS, na sigla em inglês) e geoengenharia que “prometem que podemos continuar queimando combustíveis fósseis.”

É uma pena que Lukacs e Sikora não estão reconhecendo a gloriosa oportunidade aqui para um tanto de atrevimento em jiu-jitsu político.

Sejamos claros: enquanto é uma piada divertida sugerir que Gates está virando um Comuna porque ele teve uma epifania sobre Falha de Mercado e a importância da taxação progressiva e do setor público, a realidade [11] é que sua fundação, justo de uma tropa de outras, vem enfiando bilhões na privatização da educação nos EUA – em esforços para ligar os pagamentos dos professores a testes sobre os alunos, para expandir escolas privadas, e restringir negociações coletivas.

Mesmo onde a Fundação Gates angariou mais fãs – com seu trabalho sobre a AIDS, malaria e a crescente ameaça da tuberculose – sua crítica não oficial das políticas da Organização Mundial de Saúde deveria incomodar qualquer um que acredita na democracia.

Mas Lukacs e Sikora não acham pelo menos digno de atenção que Bill Gates anda por aí evangelizando sobre como o Capitalismo não é o bastante?

Gates na verdade não menciona CCS ou geoengenharia em seu documento. Ao invés disso, uma das áreas fascinantes que ele espera que receba mais financiamento público é a Química Solar, também conhecida como fotosíntese artificial [12]

Enquanto células fotovoltaicas geram eletricidade dos raios do sol, e a energia termo solar usa raios de sol rebatendo em espelhos frequentemente para aquecimento, a química solar explora o poder do sol para dividir as moléculas de água para produzir oxigênio e hidrogênio que podem ser usados como combustível, ou usa a luz do sol, água e gás carbônico para criar hidrocarbonetos que podem então sofrer combustão sem liberação de dióxido de carbono na atmosfera.

Nós já temos a tecnologia para eletrificar nossa frota de veículos de passageiros; só precisamos de políticas de demanda ao estilo norueguês para rapidamente conduzir a adoção de veículos elétricos. Mas graças à baixa densidade de energia mesmo das baterias mais avançadas, aviões jumbo e navios cargueiros elétricos ainda estão fora de alcance. As baterias necessárias para fazer o trabalho seriam muito pesadas.

As emissões de gases do efeito estufa da maioria dos biocombustíveis de primeira e segunda geração se revelaram piores que os de combustíveis fósseis uma vez que uma análise de ciclo de vida completo foi realizada. Então a química solar poderia ser a opção milagrosa para solucionar as emissões nestes setores chave. Gates está certo em clamar por novos investimentos públicos aqui enquanto a maioria dos investidores privados não veem de onde eles poderiam tirar uma grana.

Mas melhor ainda, progressistas podem tomar onde Gates começa seu argumento, expor as contradições, e levar à conclusão lógica que faria corar os bilionários.

Nós sabemos que energia não é o único setor a sofrer a influência da preguiça do investidor avesso ao risco e da estagnação da inovação. O que faz da já mencionada tuberculose [13] e outras infecções bacterianas algo tão aterrorizante é que nós estamos ficando sem drogas para tratar essas doenças. A Tuberculose Multirresistente (TBMR) (em inglês, “Multi-drug-resistant (MDR)” e “extensively-drug-resistant (XDR)”) vem se espalhando no Ocidente e aparentemente não temos muito o que fazer para pará-la na ausência do desenvolvimento de uma nova classe de antibióticos.

Estamos no limiar de uma era pós-antibióticos, onde uma infecção após um arranhão ou chegando através de um catéter num hospital qualquer pode ser uma sentença de morte [14].

O crescimento da resistência anti-microbial é, de muitas maneiras, uma ameaça mais imediata para a humanidade do que a mudança climática. E todo mundo familiar com o problema sabe que existe uma razão para isso: a recusa da indústria farmacêutica por cerca de três décadas de investir na pesquisa necessária por que antibióticos simplesmente não são lucrativos o bastante comparados com drogas parar doenças crônicas.

Setor por setor, o conjunto de todas as coisas que são lucráveis é muito menor que o conjunto de todas as coisas que são úteis. O Capitalismo acorrenta a produção, limitando o que podemos produzir para apenas aquelas coisas que permitem o Capital se expandir – degradando as vidas de todos, mesmo dos indivíduos mais ricos. A Tuberculose Multirresistente não se importa com quantos bilhões você possui numa conta nas Bahamas.

Expressando numa linguagem que o Vale do Silício poderia entender, isso significa que o Capitalismo só pode oferecer uma sombra do potencial inovador que o Socialismo poderia oferecer. Enquanto isso, o micro-esquerdismo neo-malthusiano de “o negócio é ser pequeno” (no original, “Small Is Beautiful”) [15] de gente como Lukacs e Sikora não tem nada a dizer sobre inovação, pesquisa e o avanço de nossa espécie.

Em nome do clima [16], em nome do enfrentamento da resistência aos antibióticos, e por tantos outros motivos, nós precisamos reviver os argumentos sobre como o Capitalismo limita a produção e asfixia a inovação, que um dia estiveram no coração do discurso progressista.

Nós poderíamos ter tanto a mais – e sem precisar de depender de gente como Bill Gates.

Tradução: Everton Lourenço


Leituras Relacionadas:

Ainda sobre a questão de como a maior parte das grandes inovações são resultado de investimento público em grandes universidades, sobre como as empresas se apropriam de tais inovações apenas nos últimos estágios das mesmas para extrair lucro, e sobre como o Socialismo poderia gerar possibilidades muito maiores para a inovação e a tecnologia:

https://ominhocario.wordpress.com/2015/07/27/inovacao-vermelha/

Sobre as limitações da filantropia de bilionários como Bill Gates como método para fazer avançar a justiça social e a luta contra desigualdades e contradições do Capitalismo:

https://ominhocario.wordpress.com/2015/08/07/contando-com-os-bilionarios/

Sobre como o discurso de que “estamos destruindo o nosso planeta” retira do Capitalismo (e da classe empresarial) a sua responsabilidade no processo das mudanças climáticas, criando uma fantasia de que a maioria das pessoas teria alguma autonomia sobre as decisões relativas aos processos que vem acelerando dramaticamente essas transformações:

https://ominhocario.wordpress.com/2015/07/23/o-mito-do-antropoceno/

Um belíssimo e curto livro que explora, área por área da produção humana, as limitações do mito de que basta privatizar as atividades para garantir as melhores possibilidades, mostrando como em cada área os interesses empresariais podem entrar em contradição com o que pode ser visto como o bem de todos (mas o livro não se limita à dicotomia rasteira Estado x Mercado, muito pelo contrário):

http://novo.fpabramo.org.br/sites/default/files/Pao%20nosso%20web.pdf

Aliás, o site do autor, Ladislau Dowbor, é uma fonte espetacular de estudos e análises extremamente úteis sobre o mundo atual, suas tendências e sobre as possibilidades que ele oferece de transformação:

http://dowbor.org/

Ainda não tive oportunidade de ler, mas o livro citado no texto, “O Estado Empreendedor – Desmascarando o Mito do Setor Público vs Setor Privado”, de Mariana Mazzucato, parece ser uma leitura muito interessante:

http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=13659


Notas:

[1] no original, “Bill Gates, Crypto-Socialist?”. Aparentemente “Crypto-Communism” é um termo usado para designar simpatizantes das ideias comunistas que mantém essa condição em segredo para evitar problemas públicos ou consequências políticas. Pensei em usar “Simpatizante do Socialismo”, ou “Secretamente Socialista”, mas acabei optando pela versão mais simples.

[2] http://www.ted.com/talks/bill_gates?language=en#t-1105817

[3] http://www.ft.com/cms/s/2/4f66ff5c-1a47-11e5-a130-2e7db721f996.html#axzz3tDu5I3zW

[4] http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=13659 e http://marianamazzucato.com/projects/the-entrepreneurial-state/o-estado-empreendedor/

[5] http://www.gatesnotes.com/Energy/Energy-Innovation

[6] http://mission-innovation.net/

[7] http://www.breakthroughenergycoalition.com/en/index.html

[8] http://www.gatesnotes.com/Energy/Investing-in-Energy-Innovation

[9] http://www.gatesnotes.com/~/media/Files/Energy/Energy_Innovation_Nov_30_2015.pdf?la=en

[10] http://www.theguardian.com/environment/true-north/2015/dec/01/will-bill-gates-and-his-billionaire-friends-save-the-planet?CMP=share_btn_fb

[11] https://www.jacobinmag.com/2015/11/philanthropy-charity-banga-carnegie-gates-foundation-development/

[12] http://www.gizmag.com/record-energy-efficiency-solar-hydrogen-artificial-photosynthesis/39011/

[13] http://www.cdc.gov/tb/publications/factsheets/drtb/mdrtb.htm

[14] http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2015/12/mau-uso-dos-antibioticos-esta-criando-superbacterias-invenciveis-diz-estudo.html

[15]  https://www.jacobinmag.com/2015/11/capitalism-small-is-beautiful-world-bank-imf-free-trade/

[16] https://www.jacobinmag.com/2015/12/naomi-klein-climate-change-this-changes-everything-cop21/

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