O problema da “natureza humana” ou “essência humana”: uma introdução à Lukács e a ontologia

Resumindo, talvez além do admissível, as investigações acerca da essência humana, poderíamos afirmar que nela encontramos dois grandes momentos: o primeiro, que vai dos gregos até Hegel, e o segundo, de Marx até nossos dias. Se, até Hegel, o problema era descobrir qual o limite das possibilidades de evolução da sociedade a partir da determinação de uma essência a-histórica, com Marx o problema se converte em como transformar a história humana, suas relações sociais predominantes, de modo a transformar a essência humana no sentido de possibilitar o seu pleno desenvolvimento a partir de uma nova relação. Não se trata mais de justificar a dominação da classe representada pelo pensador ao transformar a sociedade de sua época no “fim da história” (Aristóteles e o escravismo, a escolástica e a sociedade feudal, os modernos e Hegel e a sociedade burguesa etc.), mas sim de explorar as possibilidades reais, efetivas, inscritas nas contradições inerentes à ordem presente, para a superação dos estranhamentos nela operantes e evoluir para uma sociedade (ou seja, com as devidas mediações, para uma nova conformação da essência humana) na qual tais estranhamentos não mais possam operar.

por Sérgio Lessa, na Revisa Outubro, Ed. 6 (2001)

Montagem baseada em colagem de John Seven | flickr

  1. Lukács e seu tempo
  2. O problema da essência humana
  3. O estatuto ontológico da essência
  4. Trabalho e reprodução
  5. Ideologia e estranhamento
  6. Conclusão

[Lukács e seu tempo]

Georg Lukács nasceu na Hungria em 1885, dois anos após a morte de Marx e ainda em vida de Engels. Faleceu em 1971, quando o estruturalismo exibia suas primeiras crises e a “pós-modernidade” ainda dava os seus primeiríssimos passos. Participou ativamente do que se transformou, com todos os prós e contras, da tragédia deste século: tal como tantos outros revolucionários, apostou todas as suas fichas na Revolução Russa, em especial no leninismo e, até o final de sua vida, manteve sua adesão ao que veio a se transformar o Leste Europeu.

Quando se entra em contato com a obra Lukács pela primeira vez, não raramente esta parece ser a questão mais urgente: foi ele ou não um stalinista. O fato de a resposta depender do que entendemos por “stalinista” é já um indício do terreno nebuloso em que nos encontramos. Se por este termo entendemos uma adesão incondicional a Stalin, há argumentos suficientes para afirmar taxativamente que Lukács não foi um “stalinista”. Ele realizou uma incansável “luta de guerrilha” contra a consolidação do que teoricamente se cristalizou como o dogma stalinista, se opôs ao abandono da tradição hegeliana enquanto um dos elementos constituidores do pensamento marxiano, criticou, incansável, o mecanicismo e economicismo do “marxismo oficial”: em suma, não há nenhuma identidade entre Lukács e o stalinismo neste patamar. [1]  

Contudo, se entendemos por stalinismo um campo mais amplo, que se particulariza no interior do marxismo no século XX pelas teses do “socialismo em um só país” e pela defesa do modelo soviético como um passo efetivo na direção da sociedade comunista, certamente Lukács se encontraria no seu interior. Até o final de sua vida entendeu que as “deformações” do socialismo soviético diziam respeito, apenas, às esferas da política e da ideologia, não atingindo as relações de produção. Talvez emblemática de sua posição política tenha sido a sua postura quando do Levante Húngaro de 1956: participou ativamente da revolta, foi Ministro do governo rebelde, mas foi contra o rompimento com a União Soviética. Nunca abandonou a idéia de que uma reforma, para ele ao mesmo tempo possível e imprescindível, poderia converter o sistema soviético em autêntico socialismo. Talvez não seja um exagero afirmar que foi ele um incansável e intransigente reformista no interior do “socialismo real”. 

Suas obras não poderiam deixar de trazer a marca desta sua opção pela “radical oposição reformista” no interior do bloco soviético, e ,certamente, está aqui a clivagem fundamental entre Lukács e o seu mais brilhante discípulo, István Mészáros. Reconhecer estas marcas, contudo, em nada nos aproxima daquela posição, não rara, que recusa in totum toda a sua produção de maturidade como mera expressão do stalinismo. Assim o fizeram tanto os seus ex-discípulos que passaram ao campo liberal-burguês, como Agnes Heller e Ferenc Feher, autores claramente conservadores como Kipadarky, Gáspár Tamas e, entre nós, em um livro recentemente publicado, Juarez Guimarães. [2] Esta posição está completamente equivocada: joga-se fora a criança junto com a água do banho. Contudo, fechar os olhos a esta relação, e às suas conseqüências teóricas, não tem sido menos problemático. 

Esta relação de Lukács com o stalinismo, contudo, é apenas o primeiro e mais superficial aspecto de uma problemática muito mais complexa. A evolução política e intelectual de Lukács, ao longo de quase um século de existência, desdobrou uma relação com Marx, e com o comunismo, muito heterogênea, o que adiciona muitos elementos complicadores para a análise de sua posição política. O jovem Lukács, anterior à História e Consciência de Classe (1923), transitou de uma posição neokantiana para uma outra fortemente influenciada por Hegel. Com a Primeria Guerra Mundial (1914-1918) e a Revolução Russa de 1917, a sua trajetória intelectual deu uma guinada à esquerda que seria definitiva: abraçou o campo marxista-revolucionário e aderiu ao Partido Comunista Húngaro. 

Participou da Comuna Húngara de 1919 e, com a derrota desta, passou à clandestinidade. Seus ensaios publicados em Tática e Ética e História e Consciência de Classe são a expressão mais acabada deste momento: uma concepção messiânica dos partidos comunistas, uma concepção teleológica da história em direção ao comunismo e uma concepção fortemente hegeliana do proletariado como a mediação que realizaria a identidade sujeito-objeto através da revolução socialista. As debilidades, hoje evidentes, desta posição, o levaram, após um áspero debate no interior do movimento revolucionário [3] , a abandoná-la e iniciar uma crítica da tradição: é neste movimento que, no início da década de 1930, Lukács tem contato, em Moscou, com os Manuscritos de 1844, texto então ainda inédito, e que confirma a sua intuição que teríamos no pensamento marxiano uma nova e revolucionária concepção de mundo (Weltanschauung) e que esta seria a perspectiva mais adequada para compreender seus escritos «econômicos», «filosóficos», «sociológicos», «políticos», etc. 

É também nesta época que Lukács decidiu abandonar a militância política direta: derrotado no episódio das Teses de Blum (Blum era seu codinome), convenceu-se que era pior político que teórico. Há que se levar em conta, também, que, àquela época, a consolidação do stalinismo tornava a arena política cada vez mais inóspita, mesmo para a «oposição reformista» de Lukács, por uma razão ou outra, possivelmente um pouco por cada uma, Lukács concentrou na sua «guerra de guerrilha» no campo da teoria e, com exceção do Levante Húngaro de 1956, nunca mais ocupou nenhum cargo de direção política. 

Desde a leitura dos Manuscritos de 1844 até o final de sua vida, a trajetória intelectual de Lukács evolui para a elaboração de uma proposta de recuperação de Marx que pusesse em relevo o caráter radicalmente revolucionário da sua obra. Contra todas as concepções que cancelam a possibilidade ontológica da revolução socialista, Lukács se propõe a demonstrar como, por quais mediações, os homens são os únicos responsáveis por sua história, de tal modo que não há nenhuma justificativa para que a ordem burguesa venha a ser o “fim da história”, tanto na versão hegeliana quanto na farsa de Fukuyama. 

Este empreendimento levou Lukács a confrontar todas as mais significativas correntes teóricas deste século. Não apenas combateu o irracionalismo (com argumentos que mantém sua validade, em muitos aspectos fundamentais, mesmo em relação à maioria das vertentes pós-modernas), como ainda as principais concepções burguesas que afirmam a eternidade da ordem capitalista. Argumentou contra o estruturalismo, que termina por conduzir à «morte do sujeito» e cancela os homens como demiurgos de sua história; criticou o stalinismo, cuja concepção teleológica da história representa a negação da concepção marxiana. E, como se não bastasse, cruzou espadas com os idealistas de todos os matizes que cancelam a reprodução material como o momento predominante da história (e, por tabela, embora aqui haja muitas mediações que devam ser consideradas na análise dos casos concretos, também cancelam o trabalho enquanto categoria fundante do ser social). Para sermos breves, a obra de Lukács se converteu num diálogo crítico incessante com o que de mais significativo ocorreu no debate teórico deste século, sendo, também por isso, portadora de uma universalidade que o torna um pensador atípico em nossa época. E, se há um veio condutor de sua trajetória da maturidade, certamente é este: explicitar as mediações sociais que fazem do homem o único demiurgo de seu próprio destino, de tal modo a demonstrar a possibilidade ontológica (que não significa a viabilidade prática imediata, nem implica num programa) da revolução comunista (na acepção marxiana do termo).

É nesta rica trajetória intelectual que Lukács vai acumulando, desde os anos trinta até sua morte, os elementos que culminarão em suas duas grandes obras de maturidade: a Estética e a Ontologia. [4] Dentre os momentos mais importantes desta trajetória temos seus estudos estéticos, que lhe possibilitam investigar a fundo os fenômenos ideológicos e sua relação com o desenvolvimento da reprodução social; seu acerto de contas com Hegel, que passa pelo O Jovem Hegel e por um capítulo de sua Ontologia, no qual distingue o “verdadeiro” do “falso” na sua obra [5] e, finalmente, sua investigação das conexões categoriais mais genéricas da reprodução social que o conduzirão, no início dos anos sessenta, à descoberta desta “bela palavra ontologia” [6] e a elaboração do que viria a ser seu último grande texto, a Ontologia

Portanto, retornando à questão da relação de Lukács com o stalinismo, se no plano imediatamente político temos uma relação de oposição reformista ou de adesão crítica, esta caracterização apenas se aproxima da verdade se levarmos em conta que seu desenvolvimento intelectual foi dos mais complexos, o que torna esta relação tudo menos uma relação simples, que pode ser caracterizada por um simplório “sim” ou “não”. Ignorar a complexidade desta relação tem servido, invariavelmente, como desculpa para se esquivar de uma análise, necessariamente trabalhosa, dado seu volume e complexidade, de seus textos mais significativos.

Há, ainda, uma outra esfera de problemas que deve ser considerada num artigo introdutório à obra de maturidade de Lukács: seu significado para a discussão específica, e área de conhecimento particular, a que se dedica: a estética e a ontologia. Bastante, ainda que longe do suficiente, já foi escrito acerca de suas contribuições e inovações nas questões estéticas, em especial da crítica literária. É este o aspecto de sua obra mais explorado e melhor conhecido. Entre nós há uma tradição lukácsiana que se concentrou neste aspecto, articulada principalmente ao redor de Roberto Schwartz e, numa vertente em tudo diversa, de Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, José aulo Netto e Celso Frederico. [7] Contudo, há uma outra dimensão em que sua contribuição tem sido mais investigada nas últimas décadas: as suas formulações para a compreensão da relação do homem (nas dimensões de indivíduo humano e humanidade) com sua própria história (novamente, individual e coletiva). Como nenhum outro pensador após Marx, Lukács se debruçou na exploração das mediações pelas quais os homens fazem a sua própria história, “ainda que em circunstâncias que não escolheram”. Como é este o meu campo de estudo, será este o eixo deste texto de apresentação.

O problema da essência humana 

Resumindo, talvez além do admissível, as investigações acerca da essência humana, poderíamos afirmar que nela encontramos dois grandes momentos. O primeiro, que vai dos gregos até Hegel, e o segundo, de Marx até nossos dias. 

O primeiro período se subdivide em três momentos. A Grécia Antiga que, desde Parmênides, estabeleceu o patamar do que viria a ser a discussão, até Hegel; o período Medieval, Santo Agostinho e São Tomás como seus maiores expoentes e, finalmente, Hegel, principalmente o da Fenomenologia do Espírito. O que caracteriza todo este primeiro período é a concepção dualista/ transcendental de que teríamos um “verdadeiro ser”, que corresponderia à essência, à eternidade, ao fixo; e um ser menor, ou uma manifestação “corrompida” do ser, que seria a esfera do efêmero, do histórico, do processual. 

No mundo grego, a concepção da relação entre o homem e seu destino foi moldada a esta concepção mais geral. Existiria uma dimensão essencial, eterna, que não poderia ser construto dos homens nem poderia ser por eles alterada. Esta dimensão, por sua vez, impunha limites ao fazer a história pelos homens. Assim, em Platão, a direção da história é dada, não pelas ações dos próprios homens, mas pela referência fixa ao modelo, também fixo, da esfera essencial das Idéias. 

Mutatis mutandis, em Aristóteles um esquema análogo pode ser encontrado. O Cosmos seria uma estrutura esférica que articularia uma esfera eterna (a das estrelas fixas) com o seu centro, no qual se localizaria a Terra, onde tudo não passaria de movimento, de história. Esta estrutura forneceria a cada coisa o seu “lugar natural”, de tal modo que conhecer a essência de cada ente nada mais significava que descobrir o seu “lugar natural” dentro da estrutura cosmológica. O “lugar natural” dos homens seria o espaço limitado pelos semideuses e os bárbaros: a humanidade poderia se desenvolver no espaço entre os bárbaros (os humanos mais primitivos) e os gregos (em especial os Atenienses, os humanos mais desenvolvidos). Tal como em Platão, também em Aristóteles o limite da história humana é dado, não por nenhuma dimensão propriamente sócio-história, mas pelo caráter dualista de sua concepção de mundo: a essência impõe aos homens o “modelo” da Idéia ou o “lugar natural” do Cosmos. Em ambos os casos, cabe aos homens, no limite, apenas desenvolverem as possibilidades que lhes são fornecidas por esta estrutura ontológica mais geral. 

A enorme crise que marca a transição do escravismo ao feudalismo é o primeiro momento da história humana em que, por séculos, os homens foram submetidos a um processo de decadência. As contradições internas ao modo de produção escravista, potencializadas pela sua particularização em Roma, junto com a expansão dos povos bárbaros (que se relacionava, em alguns casos como os varegues e magiares, com a expansão do Império Chinês), fez com que a crise do Império Romano fosse também a crise final do escravismo. Desta crise, dos entulhos de Roma e da sua apropriação pelos povos “bárbaros”, terminou surgindo, num processo tortuoso, desigual e muito prolongado, o que viria a ser o modo de produção feudal. 

A vivência, por séculos, de um processo histórico de decadência no qual a única certeza era que o amanhã seria pior que hoje, terminou dando origem a uma concepção fatalista da história. Tal fatalismo é o reflexo ideológico do «destino cruel» ao qual os homens estavam submetidos naquele momento histórico. E, por esse motivo, as seitas religiosas então portadoras de uma concepção segundo a qual os homens estavam aqui na Terra para sofrer e pagar os seus pecados terminaram se transformando na expressão ideológica predominante daquele momento histórico. Foi neste contexto que surgiu e se desenvolveu a Igreja católica. Tal como a concepção grega de mundo, aqui também se mantém uma estrutura ontológica dualista: Deus, enquanto eterna e imutável essência de tudo versus o mundo dos homens, cuja característica é ser locus do pecado e, por isso, efêmero, mutável e transitório. Tal como os gregos, os homens medievais também concebiam a sua história como a eles imposta por forças que estes jamais poderiam controlar. Diferente dos gregos, contudo, a concepção cristã pressupõe os homens como essencialmente ruins, pecadores e, por isso, merecedores do sofrimento terreno. O pecado original explica a razão e os limites do sofrimento humano: temos um destino de sacrifícios porque pecamos, este sacrifício termina com o Apocalipse e o Juízo Final. Depois dele, a danação eterna ou o Paraíso. Novamente, a história humana seria portadora de limites que não poderiam ser alterados pelos homens: estava encarcerada entre a gênese e o apocalipse. 

A passagem do mundo medieval ao mundo moderno não conseguiu romper completamente com a dualidade entre a eternidade da essência e a historicidade do mundo dos homens. Certamente, o pensamento moderno abandona a concepção medieval de uma essência divina dos homens; a essência humana é agora entendida como a «natureza» dos homens. Esta “natureza”, por sua vez, nada mais é que a projeção à universalidade da “natureza específica” do homem burguês: acima de tudo, ser proprietário privado. Os padrões modernos de racionalidade e de essência humanas correspondem às condições de vida nas sociedades mercantis, então em pleno desenvolvimento. A relação comercial capitalista, um momento apenas particular da história, é transformada na essência eterna e imutável de todas as relações sociais: o homem se converte em lobo do homem. 

Tal como com os gregos e medievais, também o pensamento moderno está preso à concepção segundo a qual os homens desdobram na sua história determinações essenciais que nem são frutos de sua ação, nem poderiam ser alteradas pela sua atividade. Por serem essencialmente proprietários privados, o limite máximo do desenvolvimento humano não poderia jamais ultrapassar a forma social que permite a máxima explicitação dessa sua essência imutável, a propriedade privada. Para ser breve: não há como se superar a sociabilidade burguesa porque o homem, sendo essencialmente um egoísta e proprietário privado, não conseguiria desdobrar nenhuma relação social que superasse essa sua dimensão mesquinha. Nisto se resume, no que agora nos interessa, as reflexões acerca da “natureza humana” nos modernos. De Locke e Hobbes a Rousseau, a natureza humana comparece como a determinação essencial dos homens, determinação esta que impõe os limites da história e que não pode ser por esta alterada. Sob uma nova forma, e com um novo conteúdo de classe, nos defrontamos novamente com a velha concepção ontológica dualista: há uma dimensão essencial que determina a história sem ser resultante, nem poder ser alterada, pela história que ela determina. Para os modernos, esta dimensão é a “natureza” de proprietário privado dos indivíduos humanos.

Hegel leva esta concepção às suas últimas conseqüências. O Espírito Absoluto é o resultado rigorosamente necessário das determinações essenciais do Espírito em-si: a essência, posta no início, determina sua passagem para o seu para-si. A verdade está no fim, mas a essência do processo que determina o fim como verdade está posta já no seu primeiro momento. Direção dada pela essência, a história adquire um caráter teleológico cujo resultado não poderia ser outro senão a plena explicitação da essência já dada desde o início: a sociedade burguesa representa o “fim da história”. 

Lukács argumentou à saciedade os traços “positivos”, “revolucionários” e “verdadeiros” das realizações hegelianas, fundamentalmente sua concepção da história enquanto uma processualidade dialética. Não poderíamos, aqui, nos deter sobre este aspecto do problema, ainda que nos pareça imprescindível ao menos assinalá-lo. O que a nós importa é que, tal como na Grécia clássica, a essência em Hegel não é um construto, nem poderia ser radicalmente modificada pela processualidade (a história dos homens) da qual é a determinação essencial. E, se a essência funda o processo, o problema da origem da essência, de sua gênese, passa a ser literalmente insolúvel. Para os gregos, esta questão nunca foi decisiva, pois como, segundo eles, para a essência ser perfeita teria que ser eterna, a questão da sua gênese pôde ser evitada. Para a Idade Média, a origem da essência dos homens está em Deus, especificamente na Criação. Para eles, portanto, desde que não se perguntasse pela gênese de Deus (tal como entre os gregos, descartada pela afirmação de sua eternidade), a origem da essência humana era explicada pela ação divina. 

Para os modernos, esta questão era resolvida pela afirmação da eternidade da “natureza” humana. Ser humano significa ter a natureza dos homens, isto é, acima de tudo, ser portador da “racionalidade” do proprietário privado. Em última instância, a concepção de que Deus fez os homens com esta natureza termina permeando os escritos de muitos dos seus mais importantes pensadores. Em Hegel, o problema da gênese recebe uma solução de caráter estritamente lógico. Na Ciência da Lógica termina por transformar o “nada”, de não-ser, não-existente, em o “ser-do-outro”, em uma relação de alteridade, de diferença, ao invés de uma relação de negação ontológica. Com isso, Hegel perde a possibilidade de incorporar, em seu sistema, a negação ontológica, categoria decisiva na história humana, ainda que não exclusivamente nela. [8] 

A essência a-histórica não pode possuir na história sua gênese; por isso, toda concepção histórica que se baseia nesta concepção deve pressupor, de alguma forma, uma dimensão transcendente que funda esta mesma essência. Tal determinação não-social da história humana faz com que esta seja portadora de um limite que ela não pode em hipótese alguma superar, e não é mero acaso que em todos os casos este limite seja exatamente a sociedade à qual pertence o pensador. Para Aristóteles, o lugar natural dos homens fazia de Atenas o último e mais desenvolvido estágio de desenvolvimento humano; para a Idade Média, a sociedade feudal era uma criação divina que corresponderia à essência pecadora dos homens; para os modernos, a melhor sociedade é aquela que possibilita a explicitação plena do egoísmo essencial dos proprietários privados, a sociedade mercantil burguesa; e, finalmente, para Hegel, a plena realização da essência humana é o Espírito Absoluto, no qual a sociedade civil (bürgerlisch Gesellschaft) encontra no Estado seu complemento dialético ideal, garantindo assim a vida social em seu momento mais pleno (o que inclui, claro, a propriedade privada burguesa). 

Em suma, todas as principais concepções ontológicas, da Grécia a Hegel, conceberam a essência humana como a-histórica, no preciso sentido que ela funda e determina a história da humanidade contudo não pode ser determinada ou alterada por ela. A imutabilidade da essência aparece como condição indispensável da história: a efemeridade dos fenômenos históricos apenas poderia existir fundada por uma instância externa à história. Desta concepção ontológica decorrem três conseqüências inevitáveis: 

1) o fundamento da história não pode ser ela própria, mas sim, uma instância a ela transcendente. Daqui, o caráter dualista das ontologias até Marx, Hegel incluso; 

2) por ser fundada em uma categoria não-histórica, o sentido da história decorre da essência da sua categoria fundante (a ordem cosmológica, o Mundo das Idéias, Deus, a “natureza” do proprietário privado burguês ou o Espírito hegeliano). A realização dessa essência se transforma no limite intransponível à história humana: o desenvolvimento da humanidade, por possuir um fundamento que não ele próprio, termina limitado por barreiras que não decorrem dele, e que por isso não as pode superar. É este elemento de todas as ontologias antes de Marx que as faz ideologias justificadoras do status quo da sociedade na qual surgiram. É aqui que reside explicitamente seu caráter mais conservador; 

3) por ter um início e um fim determinados por uma essência a-histórica, as ontologias que tratamos não poderiam evitar uma concepção teleológica da história. O destino humano teria sua explicação última no sentido da história, sentido este determinado do exterior da história enquanto tal. 

Segundo Lukács, o projeto revolucionário marxiano realiza a superação de todas estas concepções a-históricas da essência humana, bem como das concepções teleológicas da história que necessariamente as acompanham. É isto que o pensador húngaro se propõe a demonstrar com a sua Ontologia. Para facilitar a exposição de como Lukács realiza esta demonstração, a desdobraremos em dois momentos: 1) o estatuto ontológico da essência e, 2) as categorias ontológicas que fundam a historicidade da essência humana. 

O estatuto ontológico da essência 

Todas as ontologias até Hegel consideram a essência como o “verdadeiro ser”, ou seja, a essência concentraria em si um quantum maior de ser que os fenômenos. Há, neste sentido, uma clara distinção do estatuto de ser entre o essencial e o fenomênico: o primeiro é autenticamente, o segundo apenas pode existir tendo na essência o seu fundamento. Portanto, a existência do fenômeno é, para sermos breves, de segunda ordem, decorrente da existência primordial da essência. Esta supremacia ontológica da essência é o fundamento último das concepções teleológicas da história, pois, novamente sendo extremamente sintético,o desenvolvimento histórico teria por direção e sentido necessários à realização desse ser essencial. 

Marx opera uma reviravolta nesta concepção, segundo Lukács. Para Marx, a essência e o fenômeno são categorias que possuem o mesmo estatuto ontológico, são igualmente existentes e igualmente necessárias ao desdobramento de todo e qualquer processo. Não há absolutamente nenhuma processualidade que não desdobre, no seu desenvolvimento, uma relação entre essência e fenômeno. Em sendo assim, o que distinguiria essência e fenômeno seriam as distintas funções que exercem no interior da processualidade da qual são determinações. 

Vejamos: um processo é, necessariamente, a passagem de uma dada situação à outra (digamos, a passagem de uma semente a uma árvore, ou de uma monarquia a uma república). Esta passagem possui alguns elementos necessários: 

1) os seus momentos devem ser distintos entre si, senão não teríamos um processo. Tais momentos têm que possuir, portanto, cada um deles, elementos que os diferenciam entre si e os tornam únicos. Assim, cada momento da passagem da semente à árvore, ou da monarquia à república, constitui um momento distinto e, nesse sentido, singular, no interior do processo; 

2) a singularidade dos momentos do processo não significa, contudo, que não haja, também, elementos de continuidade que os permeiem a todos. Assim, a proclamação da república no Brasil, e a derrubada revolucionária da monarquia absolutista na França de Luiz XVI são, ambas, passagens da monarquia à república. Contudo, são processos absolutamente diferentes porque, para sermos breves, são partícipes da história de dois países completamente distintos. A monarquia e a república brasileiras possuem determinações históricas comuns, de tal modo que perpassaram também o processo de transição de uma a outra. O mesmo se pode dizer da realidade francesa. No exemplo da semente e da árvore, o mesmo DNA, por exemplo, é uma determinação que está presente ao longo de todo processo, e esta presença de um elemento comum a todo processo em nada diminui a singularidade irrepetível de cada um dos seus momentos enquanto tais; 

3) Há, portanto, duas determinações fundamentais para que ocorra qualquer processo: os elementos de continuidade que articulam cada um dos seus momentos singulares em um único processo, e os elementos que consubstanciam a diferença dos momentos entre si e, portanto, do ponto de partida do processo do seu ponto de chegada; 

4) A relação entre estas determinações fundamentais é dupla. Por um lado, os momentos singularizantes que consubstanciam cada momento particular do processo são a mediação indispensável para que o processo se desdobre enquanto tal. Assim, como em qualquer dos processos históricos citados, cada um dos eventos que articulam a transição da monarquia à república constitui a mediação sem a qual aquela transição específica não poderia ocorrer. Mas, por outro lado, também é verdade que, em cada um desses eventos, o horizonte possível de desenvolvimentos futuros é dado pelo campo de possibilidades historicamente reais inscritas no seu hic et nunc. Por isso, cada momento do processo é único, irrepetível – o que quer dizer, é novo, inédito – e, concomitantemente, é portador de todas as determinações passadas que condicionaram sua gênese. O que equivale a dizer que são eles, também, portadores das determinações históricas mais gerais do processo. O mesmo, mutatis mutandis, pode ser dito da transformação da semente em árvore. 

Há, portanto, intrínsecas a toda processualidade, duas funções ontológicas articuladas e distintas: as determinações mais universais que perpassam todo o processo, e os momentos singulares que consubstanciam as mediações indispensáveis para que o processo se desenvolva de um estágio mais primitivo ao mais desenvolvido. Sem as determinações mais universais, o processo não teria continuidade, seria o mais absoluto caos. Sem os processos de singularização não haveria as mediações indispensáveis para que o processo possa passar de uma dada situação à outra. É isto que, segundo Lukács, diferenciaria essência e fenômeno para Marx: os elementos de continuidade consubstanciam a essência, e os elementos de singularização, a esfera fenomênica. Claro que, nesta determinação reflexiva, o fenômeno só pode vir a ser em sua relação com a essência, enquanto esta apenas pode se desenvolver pela mediação fenomênica: há aqui uma constante interação entre as duas categoriais, de tal modo que:

a) diferente de todas as ontologias anteriores, o desenvolvimento dos fenômenos exerce uma influência real no desdobramento da essência que, no limite, poderá ser profundamente transformada pelo fenômeno. Pensemos, por exemplo, em um processo revolucionário; 

b) ao contrário de todas as ontologias que o precederam, para Marx, a essência não se identifica imediata e diretamente com o universal. Na enorme maioria das vezes a essência tende a ser a universalidade do processo, contudo, em momentos de rupturas ontológicas (como as revoluções, por exemplo), o essencial pode se manifestar em um evento singular, que traz em si o novo a ser realizado pela história; 

c) superando todas as concepções ontológicas anteriores, a essência, em Marx, tal como o fenômeno, é uma determinação inerente à história, é uma categoria absolutamente processual. Não mais se distingue por ser ela, a essência, eternamente fixa, a-histórica, enquanto o fenômeno seria o locus da mudança, do efêmero, do histórico. Esta concepção permite a Marx postular que a essência humana é construto da história dos homens e que, no interior desta se distingue, enquanto categoria, por concentrar os elementos de continuidade do desenvolvimento humano-genérico e, jamais, por se constituir no limite intransponível da história humana. 

***

Com isto, encerramos o primeiro momento da nossa exposição: teríamos em Marx uma concepção radicalmente nova da relação entre os homens e sua história. Esta seria, em todas as suas dimensões, mesmo as mais essenciais, um construto humano, e não haveria nenhuma dimensão transcendente à história a determinar os processos sociais. Os homens seriam os únicos e exclusivos demiurgos do seu destino, não haveria aqui nenhum limite imposto aos homens senão as próprias relações sociais construídas pela humanidade. 

Há, contudo, como mencionamos, um segundo momento: a exploração das mediações ontológicas pelas quais os homens, de fato, construíram sua própria história. Há a necessidade, portanto, de se demonstrar como, com que mediações, de que modo, os homens fazem a sua própria história – ou, se quiserem, a sua própria essência – e, para realizar esta demonstração, Lukács investigou as quatro categorias ontológicas fundamentais do mundo dos homens: trabalho, reprodução, ideologia e estranhamento (Entfremdung). 

Trabalho e reprodução 

Argumenta Lukács que a gênese do ser social consubstanciou um salto ontológico para fora da natureza. Se, na natureza, o desenvolvimento da vida é o desenvolvimento das espécies biológicas, no mundo dos homens a história é o desenvolvimento das relações sociais, ou seja, um desenvolvimento social que se dá na presença da mesma base genética. O que determina o desenvolvimento do homem enquanto tal não é sua porção natural-biológica (ser um animal que necessita da reprodução biológica), mas sim, a qualidade das relações sociais que ele desdobra. Se é verdade, por um lado, que as barreiras naturais (a necessidade da reprodução biológica) jamais podem ser abolidas, não menos verdadeiro é que elas são cada vez mais “afastadas”, de modo que exercem, na história dos homens, uma influência cada vez menor, ainda que sempre presente. Basta pensarmos na transição do feudalismo ao capitalismo, ou em qualquer evento histórico mais importante, para termos uma idéia clara do que aqui nos referimos: não

 é possível explicá-los a partir do desenvolvimento das determinações biológicas dos homens. Pelo contrário, o desenvolvimento social tem por seu fundamento último o fato de que, a cada processo de objetivação, [9] o trabalho produz objetiva e subjetivamente algo “novo”, com o que a história humana se consubstancia como um longo e contraditório processo de acumulação que é o desenvolvimento das “capacidades humanas” para, de forma cada vez mais eficiente, transformar o meio nos produtos materiais necessários à reprodução social. 

Em outras palavras, ao transformar a natureza, o indivíduo e a sociedade também se transformam. A construção de uma lança possibilita que, no plano da reprodução do indivíduo, este acumule conhecimentos e habilidades que não possuía antes; ou seja, após a lança, o indivíduo já não é mais o mesmo de antes. Analogamente, uma sociedade que conhece a lança possui possibilidades e necessidades que não possuía antes; ela também já não é mais a mesma. Todo processo de objetivação cria, necessariamente, uma nova situação sócio-histórica, de tal modo que os indivíduos são forçados a novas respostas que devem dar conta da satisfação das novas necessidades a partir das novas possibilidades. Por isso, a história humana jamais se repete: a reprodução social é sempre e necessariamente a produção do novo. [10] 

É esta produção do novo que revela um dos traços ontologicamente mais marcantes do trabalho: ele sempre remete para além de si próprio. Ao transformar a natureza para atender suas necessidades mais imediatas, o indivíduo também transforma a si próprio e à sociedade. Neste impulso ontológico em direção às sociabilidades cada vez mais complexas, ricas, o desenvolvimento social consubstancia o crescimento das “capacidades humanas” para produzir os bens materiais necessários à sua reprodução. Este desenvolvimento das capacidades humanas, por sua vez, possui dois pólos distintos, ainda que rigorosamente articulados (são “determinações reflexivas”): o desenvolvimento das forças produtivas e o desenvolvimento das individualidades. A rigor, sem o desenvolvimento das forças produtivas não poderíamos ter a passagem da sociabilidade aos modos de produção mais complexos e, concomitantemente, sem o desenvolvimento das “capacidades” dos indivíduos estes não poderiam operar as relações sociais cada vez mais complexas envolvidas na passagem da sociedade a modos de produção cada vez mais desenvolvidos. A reprodução social, portanto, desdobra, segundo Lukács, dois “pólos” indissociáveis: a reprodução das individualidades e a reprodução da totalidade social. 

Este remeter do trabalho para além de si próprio é a sua conexão ontológica com a reprodução social como um todo. É esta característica que o torna a categoria fundante do ser social: é aqui que a história social apresenta determinações absolutamente distintas da natureza. Por ser o locus ontológico da criação do novo, o trabalho é o fundamento genético de necessidades que, muitas vezes, requerem o desenvolvimento de complexos sociais que são em tudo e por tudo heterogêneos ao trabalho. Basta pensarmos em complexos como a linguagem (com a lingüística, a gramática, etc.), como o direito, a filosofia, as ciências, a religião, etc, para termos uma noção da complexidade do processo aqui referido. É por esse processo de desenvolvimento que o mundo dos homens vai se explicitando, ao longo do tempo, como um “complexo de complexos” cada vez mais mediado e internamente diferenciado, cada vez mais desenvolvido socialmente. 

Para distinguir entre o trabalho e o conjunto muito amplo das praxis sociais que não operam a transformação material da natureza, Lukács denominou o primeiro de posição teleológica primária e o segundo de posições teleológicas secundárias

Ideologia e estranhamento 

É no interior das posições teleológicas secundárias que encontramos o complexo da ideologia. O que o particularizaria, segundo Lukács, é sua função social específica: mediar os conflitos sociais, quaisquer que sejam eles. 

Sumariamente, Lukács argumenta que a transformação do real, no processo de reprodução social, requer necessariamente algum conhecimento do setor do real a ser transformado. [11] Esta exigência de conhecimento do real posta pelo trabalho exibe um duplo impulso à totalização que também não pode ser cancelado: 

1) como o real é uma síntese de múltiplas determinações, o conhecimento de uma destas determinações remete, necessariamente, às relações que ela possui com as “outras determinações”, de tal modo que nenhum conhecimento de nenhum setor específico da realidade se esgota em si próprio, remetendo sempre à totalidade dos complexos ao qual pertence e, no limite, à totalidade do existente. [12] 

2) O segundo momento decorre da própria praxis social: como o indivíduo que adquire um dado conhecimento acerca da pedra e da madeira ao fazer o machado é o mesmo indivíduo que vai fazer a casa, construir uma enxada ou adorar aos deuses, o conhecimento da pedra e da madeira passa a ser explorado em sua capacidade de atender às necessidades postas em outros setores da praxis social, não necessariamente articulado com aquela objetivação que possibilitou tal conhecimento. Assim, o conhecimento adquirido em uma práxis específica pode, e é, remetido e utilizado em circunstâncias as mais diversas. 

É por meio destas mediações mais gerais que, segundo Lukács, a praxis social dá origem a uma série de complexos sociais que têm a função social de sistematizar os conhecimentos adquiridos em uma concepção de mundo que termine por fornecer, no limite, uma razão para a existência humana. É neste contexto que se desenvolvem os complexos sociais da ciência, da filosofia, da religião, da ética, da estética, etc. Não podemos, aqui, examinar as determinações ontológicas de cada um destes complexos. O que aqui nos importa é indicar ao leitor como, e em que medida, do impulso do trabalho para além de si próprio, temos a gênese de complexos sociais em tudo distintos da transformação material da natureza, ainda que surjam para atender a necessidades postas, em última instância, pelo próprio desenvolvimento do trabalho. [13]

É aqui o solo ontológico do complexo da ideologia. Todo conflito social implica, para seu desdobramento, em uma transformação das relações sociais. Para tanto, no interior dos próprios conflitos, é necessário que as posições sejam justificadas, de tal forma que uma alternativa seja reconhecida como mais válida que a outra. Em sociedades sem classes, estes conflitos podem ser resolvidos sem que se recorra à violência pura. Contudo, nas sociedades de classe, a violência passa a ser uma mediação indispensável para a própria reprodução social. Em ambos os casos, a ideologia é um complexo social fundamental: sem ela, nem o desenvolvimento dos conflitos nem a utilização da violência poderiam ocorrer, impossibilitando assim a continuidade da reprodução das sociedades de classe. 

Portanto, a ideologia, para Lukács, é o conjunto das idéias que os homens lançam mão para interferirem nos conflitos sociais da vida cotidiana. Se as idéias são ou não reflexos corretos da realidade, se e em que medida correspondem ao real, é uma questão que em nada interfere [14] no fato de exercerem uma função ontológica na reprodução social. 

Conceber a ideologia como função social e não como “falsificação do real” possibilita a Lukács superar o mito da “ciência neutra”: se a ideologia fosse sempre e necessariamente a falsa consciência, a “verdadeira” consciência apenas poderia ser a ciência. Deste modo, por uma vertente absolutamente inesperada, terminaríamos na tese, claramente burguesa, da ciência como conhecimento neutro, acima das classes e dos valores, com todos os problemas que advêm de tal posição. 

Além do desenvolvimento de complexos sociais em tudo heterogêneos em relação ao trabalho, o impulso do trabalho para além de si próprio tem ainda um outro resultado: como não podemos controlar de forma absoluta todas as conseqüências possíveis dos atos humanos, há sempre a possibilidade de as objetivações terminarem por se converterem em obstáculos ao pleno desenvolvimento humano. Dito de outro modo, toda objetivação põe em ação séries causais cujos desdobramentos futuros não podem ser previstos de modo absoluto, já que ainda não aconteceram. Ou, ainda, como o presente é apenas o campo de possibilidades para o desenvolvimento futuro (do presente não há apenas um futuro possível) não podemos, a partir do presente, prever de forma absoluta como será o futuro. Ou, uma outra formulação equivalente, como a história não é uma processualidade teleológica, não há como termos absoluto controle do futuro a partir do presente (e, claro, do passado).

É este quantum de acaso presente em toda objetivação e nas suas conseqüências que se radica a possibilidade de a humanidade produzir mediações sociais que terminarão por se constituir na própria desumanidade socialmente posta pelos homens. É este fenômeno que Lukács denomina de Entfremdung, geralmente traduzido entre nós por Estranhamento ou Alienação. Nada mais é que o complexo de relações sociais que, a cada momento histórico, consubstancia os obstáculos socialmente produzidos para o pleno desenvolvimento humano-genérico. 

As formas historicamente concretas que assumem estes obstáculos variam enormemente; contudo sempre se relacionam ao nódulo mais essencial da reprodução das sociedades. É por isso que a superação dos estranhamentos fundamentais de cada sociabilidade tem requerido, até hoje, a superação da própria sociabilidade. 

Conclusão 

Temos, agora, os dois traços teóricos fundamentais do Lukács da maturidade: 

1) Marx teria operado uma ruptura fundamental com todas as concepções anteriores acerca da relação entre o homem e sua história. Após Marx, pensar a relação da humanidade com seu destino se transformou num problema totalmente diferente do que era antes. Se, até Hegel, o problema era descobrir qual o limite das possibilidades de evolução da sociedade a partir da determinação de uma essência a-histórica, com Marx o problema se converte em como transformar a história humana, suas relações sociais predominantes, de modo a transformar a essência humana no sentido de possibilitar o seu pleno desenvolvimento a partir de uma nova relação, em última análise, com o desenvolvimento das forças produtivas. Ou seja, a questão adquire um tom nitidamente revolucionário. Não se trata mais de justificar a dominação da classe representada pelo pensador ao transformar a sociedade de sua época no “fim da história” (Aristóteles e o escravismo, a escolástica e a sociedade feudal, os modernos e Hegel e a sociedade burguesa etc.), mas sim de explorar as possibilidades reais, efetivas, inscritas nas contradições inerentes à ordem presente, para a superação dos estranhamentos nela operantes e evoluir para uma sociedade (ou seja, com as devidas mediações, para uma nova conformação da essência humana) na qual tais estranhamentos não mais possam operar. Certamente, novos estranhamentos surgirão, mas a questão decisiva é como os homens tratarão dos novos estranhamentos, se a partir de uma perspectiva fundada na exploração do homem pelo homem ou se a partir de uma ordem emancipada. Tanto para superar a «pré-história» quanto para conquistar um novo patamar na relação com os estranhamentos, passo indispensável, sempre segundo Lukács, é a superação do capitalismo pelo socialismo e comunismo.

2) O segundo traço teórico do Lukács da maturidade é a sua afirmação de que Marx, além de ter afirmado ser o homem o único responsável pelo seu destino, ainda descobriu as conexões ontológicas mais gerais que consubstanciam as mediações até hoje imprescindíveis a esse processo de autoconstrução do homem: trabalho, reprodução, ideologia e estranhamento. Foi para apresentar esta sua concepção da importância do pensamento de Marx que Lukács terminou por redigir sua Ontologia

***

A Ontologia de Lukács (tal como sua Estética, para ficar com suas principais obras da maturidade) possui, portanto, uma clara intenção revolucionária; sua crítica ao capitalismo é radical nos seus fundamentos e sua perspectiva não é nada menos que o comunismo. Neste sentido, no plano ontológico (pois é disto que se trata), sua postura é claramente revolucionária. 

É isto que leva Guido Oldrini, num belo texto, [15] a argumentar que, diferente de todas as ontologias de Aristóteles a Hegel, que sempre justificaram os status quo, a ontologia marxiano-lukácsiana seria uma ontologia de novo tipo, que ele denomina “crítica” (sem nenhum parentesco com a Escola de Frankfurt!): seu objetivo fundante é demonstrar a possibilidade ontológica, e a necessidade histórica, [16] da superação comunista da sociabilidade burguesa. 

Em que pese o fato de a exploração do último Lukács estar ainda em andamento, o já acumulado parece autorizar com segurança a hipótese de ser a Ontologia o esforço mais significativo, neste século, de fundamentar em bases filosóficas sólidas a possibilidade e a necessidade históricas para a emancipação humana, da revolução socialista-comunista tal como no projeto marxiano original: uma sociedade sem Estado, sem classes e sem exploração do homem pelo homem. Debilidades aqui e ali existem e estão sendo apontadas; elas, contudo, não parecem colocar em xeque os avanços fundamentais conseguidos por Lukács neste campo.


Notas

[1]  Nicolas Tertulian publicou o mais importante texto acerca da oposição de Lukács ao stalinismo, intitulado “Lukács e o stalinismo”, Praxis, 2, 1994.

[2] Juarez Guimarães, Democracia e marxismo – crítica à razão liberal, Xamã, 1999. Cf. em especial pp. 104, 111-116.

[3] A editora Verso publicou, em 1997, uma coletânea de textos, que se julgavam perdidos, de defesa de História e consciência de classe por Lukács, intitulada In Defense of History and Class Consciousness.

[4] G. Lukács, Estética, Grijalbo, México, 1966. A Ontologia compreende, na verdade, dois textos: Per una ontologia dell’essere sociale, Riuniti, Roma, 1976-1981, e Prolegomeni all’Ontologia dell’essere sociale, Guerini e Associati, Nápoles, 1990. 

[5] Publicado no Brasil, com tradução de Carlos Nelson Coutinho, como um volume separado com o título A falsa e a verdadeira ontologia de Hegel, São Paulo, Ciências Humanas, 1979. 

[6] Guido Oldrini, em “Lukács e a ontologia crítica”, há ser publicado pela Boitempo no ano que vem, expõe as principais etapas desta trajetória de Lukács. Partindo dos anos trinta até o início dos anos sessenta, Oldrini demonstra os momentos decisivos que levaram Lukács da leitura dos Manuscritos de 1844 à Ontologia.

[7] Bastante úteis ao leitor não especializado são os textos de José Paulo Netto (principalmente a “Introdução” in Lukács, São Paulo, Ática 1981, Coleção Grandes Cientistas Sociais) e Lukács um clássico do século XX, por Celso Frederico (São Paulo, Moderna, 1977). Há, ainda, duas entrevistas de Lukács, publicadas no Brasil, que compõem uma bela introdução ao pensador húngaro: Conversando com Lukács, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969, e Pensamento Vivido, São Paulo, Ad Hominen, 1999.

[8] Cf. Sérgio Lessa, “Lukács, Engels, Hegel e a categoria da negação”. Ensaio, 17-18, 1989

[9] Objetivação é a transformação do real a partir de um projeto previamente idealizado na consciência. É uma mediação fundamental do complexo categorial do trabalho. 

[10] Não queremos sugerir que esta incessante produção do novo não exiba linhas de continuidade às quais, não raramente, são predominantes nos processos sociais.

[11] Conhecer o real, portanto, é uma exigência fundamental posta pelo próprio trabalho. Contudo, esta exigência jamais se apresenta de forma absoluta. Por exemplo: a transformação da pedra em machado pode se dar, e o conhecimento necessário para esta transformação pode estar presente, numa práxis social pertencente a um indivíduo e sociedade que crêem em uma concepção animista da natureza. Uma concepção ontológica falsa pode, perfeitamente, ser compatível com o conhecimento verdadeiro, efetivo, do setor do real a ser transformado.

[12] Acerca da determinação do processo gnosiológico pelas relações e categorias do serprecisamente-assim existente, cf. Sérgio Lessa, “Lukács, ontologia e método: em busca de um(a) pesquisador(a) interessado(a), Revista Praia Vermelha, l1(2), 1999 e também “Teleologia, causalidade e conhecimento” in Trabalho e ser social, Maceió, Edufal, 1997. 

[13] A não consideração deste fato tem conduzido, no debate contemporâneo, à redução de todo o ser social ao trabalho. Com isto, por uma outra vertente que não a de Claus Offe e Habermas, cancelamos o caráter fundante do trabalho para o mundo dos homens: se tudo é trabalho, não há como o trabalho exercer uma função ontológica fundante, já que seria mera tautologia afirmá-lo como fundante de si próprio. Cancelado o trabalho como categoria fundante está aberta a porta para também cancelarmos a reprodução material como o momento predominante da história e, ainda que com as devidas mediações, para abolirmos a distinção social entre os operários e as outras classes sociais (se todas as praxis sociais são trabalho, Antônio Ermínio de Moraes é tão trabalhador quanto qualquer operário fabril!). Atualmente, no Serviço Social, na Educação e na Medicina encontramos algumas formulações que caminham nesse sentido.

[14] Fixemos, pois fundamental para a compreensão da Ontologia: ser ideologia não depende de compor um reflexo falso ou verdadeiro do real, mas sim de cumprir, em um dado momento histórico, a função social de ideologia. Cf. E. Vaisman, “Ideologia e sua determinação ontológica”, Ensaio, 17-18, s/d.

[15] Cf. nota 5 acima.

[16] Necessidade, aqui, em uma acepção muito precisa: a melhor possibilidade futura inscrita na atual ordem das coisas. Não, há, portanto, qualquer caráter teleológico, teológico ou absoluto nesta categoria em Marx.


Leituras Relacionadas

  • Mas a Natureza Humana Não o Torna o Socialismo Impossível de Se Realizar? [Adaner Usmani & Bhaskar Sunkara] – Nossa natureza compartilhada na verdade nos ajuda a construir e definir os valores de uma sociedade mais justa.
  • O Comunismo Não Passa de Um Sonho de Utopia? Só Funcionaria Com Pessoas Perfeitas? [Terry Eagleton] – O Comunismo é apenas um sonho de ingenuidade, utopia e perfeição? Ele ignora a maldade e o egoísmo que estariam na essência da natureza humana? Um tal sistema precisaria que todos pensassem e agissem de uma única maneira, só poderia funcionar com pessoas perfeitas e harmoniosas como peças de relógio, nunca com os seres humanos diversos e falhos que realmente existem?
  • Estranho, com Orgulho [George Monbiot] – “Você se sente perdido? Talvez isso seja por que você se recusa a sucumbir à competição, inveja e medo que o neoliberalismo desperta.
  • Um Mundo Insano: Capitalismo e a Epidemia de Doenças Mentais [Rod Tweedy e Mark Fisher] – “E se não for a gente quem está doente, mas um sistema em desacordo com quem somos como seres sociais?”
  • Não, Os Indivíduos Não São Máquinas de Cálculo Racional Egoísta [Ha-Joon Chang] – Ao contrário das representações que as teorias econômicas dominantes fazem do comportamento individual humano e de sua maneira de tomar decisões, os indivíduos são seres altamente imperfeitos — com racionalidade limitada, motivos complexos e conflituosos, credulidade, condicionamento social e até mesmo contradições internas – e isso na verdade faz com que os indivíduos contem mais, e não menos.
  • Representando O Comportamento Individual Humano [Anwar Shaikh] – Não há razão para nos vincularmos ao modelo padrão de comportamento hiper-racional adotado pelas teorias econômicas dominantes, que não descreve o comportamento real dos indivíduos e nem é útil como padrão normativo. As evidências históricas, empíricas e analíticas contra o comportamento hiper-racional e os agentes representativos são esmagadoras. Precisamos entender como os agentes individuais realmente se comportam, como eles realmente reagem às mudanças no ambiente macro e até que ponto, por sua vez, o ambiente é afetado de volta.
  • Por Que Socialismo? [Albert Einstein] – Albert Einstein explica, de maneira clara e objetiva, os problemas fundamentais que enxerga na sociedade capitalista e porque uma sociedade socialista poderia ser o caminho para superá-los. 
  • As Perspectivas da Liberdade [David Harvey] – “A idéia de liberdade degenera assim em mera defesa do livre empreendimento, que significa a plenitude da liberdade para aqueles que não precisam de melhoria em sua renda, seu tempo livre e sua segurança, e um mero verniz de liberdade para o povo, que pode tentar em vão usar seus direitos democráticos para proteger-se do poder dos que detêm a propriedade.”
  • 15 Maneiras Com Que o Capitalismo Impede ou Limita Você de Ser Feliz [Robson Fernando de Souza] – “Você deseja muito ser feliz? Então talvez seja melhor começar a pensar seriamente sobre o atual sistema hegemônico, o principal causador de infelicidade geral.”
  • Os Transtornos Mentais Provocados Pelas Mudanças Neoliberais [Franco Berardi, entrevistado por Juan Íñigo Ibáñez] – “Neoliberalismo, assexualidade e desejo de morte. Filósofo italiano aponta: obsessão pelo sucesso individual e troca dos contatos corpóreos pelos digitais podem realizar distopia da humanidade insensível, para a qual já alertava Pasolini”
  • Por Que o Capitalismo Cria Postos de Trabalho Sem Sentido? [David Graeber] – “É como se alguém lá fora estivesse criando empregos sem sentido apenas com o objetivo de nos manter a todos trabalhando.”
  • Socialismo, Transformando “Miséria Histérica” em uma “Tristeza Qualquer” [Corey Robin] – “A Esquerda quer dar às pessoas a chance de fazer algo mais com suas vidas, lhes dando tempo e espaço longe do mercado.”
  • O Socialismo Vai Ser Chato? [Danny Katch] – “O Socialismo não é sobre induzir uma branda mediocridade. É sobre libertar o potencial criativo de todos.
  • O Fetichismo das Mercadorias [Fredy Perlman] – “Perlman faz um brilhante resumo dos temas principais do livro “A Teoria Marxista do Valor”, de Isaak Rubin, como sobre a continuidade e a transformação da teoria da alienação do jovem Marx na teoria da reificação e do fetichismo das mercadorias.”
  • A Reprodução da Vida Cotidiana [Fredy Perlman] – “A atividade prática diária dos homens da comunidade tribal reproduz ou perpetua a tribo; a atividade cotidiana dos escravos reproduz a escravidão; a prática cotidiana dos trabalhadores assalariados reproduz o trabalho assalariado e o capital.”
  • Sua Majestade, a Teoria Econômica [David Harvey] – “Aqui temos a crise econômica e financeira mais espetacular em décadas e o grupo que passa a maior parte de suas horas ativas analisando a economia basicamente não a enxergou.”
  • Quando a Economia vira religião e economistas sacerdotes [Rodrigo Souza] – Eichmann na Economia — o uso da técnica para pregar ideologia: O discurso dos economistas mainstream, apesar de se vender como racional, é uma forte ideologia que legitima e defende uma concepção aristocrática do mundo.
  • Graeber narra o declínio da Ciência Econômica [David Graeber] – Ela mantém-se aferrada aos dogmas — enquanto os problemas centrais ligados à produção e distribuição de riquezas mudaram. Contudo, tornou-se mais influente, ao se converter em ideologia a favor do 1%. Que fazer: salvá-la ou destruí-la?

2 pensamentos sobre “O problema da “natureza humana” ou “essência humana”: uma introdução à Lukács e a ontologia

  1. Pingback: Ursula Le Guin: Uma guerra sem fim – Global Dialogue for Systemic Change

  2. Pingback: O espectro do materialismo | Provocações Teológicas

Deixe um comentário