Como as definições políticas moldam a realidade

As definições dos termos políticos afetam o que enxergamos e o que não vemos no mundo à nossa volta, nos tornando comunicadores e atores políticos mais (ou menos) efetivos. Várias definições populares de esquerda e direita propagadas na mídia e no debate acadêmico (Estado versus mercado, governo grande versus governo pequeno, liberdade versus igualdade) enquadram o mundo em termos de direita, enquanto a definição histórica (hierarquia versus igualdade) enquadra o mundo em termos de esquerda. Veremos porque a última não só é a melhor definição, como também é a definição correta.

transcrição do podcast What is Politics (“O que é política”)


Este artigo é a transcrição do episódio 4 do podcast What is Politics. É o segundo de uma série em 3 partes discutindo os conceitos de esquerda e direita na política (e que se encaixa em uma série maior de Introdução à Política). Na primeira parte dessa série foram apresentados os significados históricos de esquerda e direita na política como sendo igualdade versus hierarquia. Este artigo discute porque esses significados são melhores do que outros que circulam em debates nas redes sociais, em textos jornalísticos, no meio político e universitário. A terceira parte da série, mostra como o par igualdade versus hierarquia é o único que consegue explicar as posições das pessoas que eram vistas como estando na direita ou na esquerda em 3 momentos históricos diferentes (Revolução Francesa, República Francesa, Revolução Russa).


Bem-vindos de volta ao O Que é Política – onde a nossa meta final é descobrir como nós, como pessoas comuns, podemos alcançar os nossos objetivos políticos, apesar de não termos autoridade oficial para tomar decisões.

Mas antes de podermos alcançar os nossos objetivos, precisamos saber quais são esses objetivos e, antes de saber disso, precisamos saber o que as palavras significam, porque, como vimos no primeiro episódio, os termos políticos são uma fossa de “paladras” [1] sem sentido – palavras que todo mundo usa sem saber de verdade o que significam – o que, como vimos naquele episódio, nos deixa mais confusos, mais impotentes e mais fáceis de manipular.

No segundo episódio, definimos política como sendo qualquer coisa que tenha a ver com a tomada de decisões em grupos, e vimos que embora os jornalistas e os acadêmicos falem de política como se se tratasse apenas da tomada de decisões envolvendo o Estado, a palavra política na realidade refere-se à tomada de decisões em qualquer tipo de grupo, seja ele um Estado, ou você com o seu chefe e seus colegas de trabalho, ou você e seus amigos, ou você e um bando de colegas chimpanzés decidindo sobre quem vai comer algumas bananas que encontraram. 

Além disso, dividimos a política em política pública, significando a tomada de decisões envolvendo o Estado, e política privada, significando qualquer outro tipo de tomada de decisões em grupos, e vimos que os mesmos princípios políticos, como governo, democracia, ditadura, classe e poder de negociação se aplicam a ambos os tipos de política.

No terceiro episódio [já traduzido], vimos que a maioria das sociedades humanas nos últimos cerca de 12.000 anos têm sido organizadas em hierarquias políticas, onde algumas pessoas têm mais poder de decisão, mais riqueza e mais direitos do que outras pessoas. E vimos que as hierarquias servem a três propósitos relacionados: facilitam a cooperação eficiente em grupo, a prevenção de conflitos, e também a exploração de membros menos poderosos por membros mais poderosos dessa hierarquia.

E daí vimos que o espectro político de esquerda-direita trata principalmente de onde nos encontramos em relação a essas hierarquias. Se você apoia os interesses das pessoas no topo de uma determinada hierarquia, então você está à direita nessa questão – e se apoia as pessoas embaixo nessa hierarquia, então você está à esquerda.

Em suma, o espectro político de esquerda-direita trata de hierarquia versus igualdade, ou seja, do conflito de classes, do conflito entre os diferentes níveis das nossas várias hierarquias políticas, econômicas, culturais e internacionais. 

No episódio de hoje

No episódio de hoje vamos continuar conversando sobre esquerda e direita, mas desta vez com o objetivo de ilustrar o poder que as definições têm em moldar as nossas percepções, e como as boas definições te dão um “cérebro-de-galáxia”, te ajudando a compreender o mundo à sua volta, a se comunicar de maneira eficaz com as pessoas à sua volta e a agir de maneira mais eficaz no seu próprio interesse – e como as definições ruins te deixam confuso, mais suscetível de alienar as pessoas com quem você precisa se alinhar, e mais propenso a dar um tiro na própria cara ou seguir andando e cair de um penhasco. 

E ao fazer isso, vamos também explicar os critérios que utilizamos – e que eu utilizo neste podcast quando estou avaliando como definir todas essas paladras políticas tão mal definidas.

Esquerda-direita [critérios para uma definição]

No último episódio afirmei que o espectro político de esquerda-direita se refere à oposição entre hierarquia política à direita e igualdade política à esquerda e mencionei brevemente algumas definições populares que concorrem com essa, como mercado versus Estado, igualdade versus liberdade ou coletivo versus indivíduo – que afirmei serem incorretas, mas não expliquei de verdade porque essas definições são incorretas ou o que torna uma definição correta ou incorreta, para início de conversa.

O site do dicionário Merriam-Webster tem um pequeno artigo sobre como escolhem novas palavras para acrescentar ao seu dicionário, e a certa altura dizem que “um dicionário não é um museu de ideias, é um manual de usuário para a comunicação” – ou seja, as palavras não significam nada, intrinsecamente – são apenas convenções sociais – são instrumentos de comunicação – mas mesmo que as definições das palavras não possam ser objetivamente certas ou erradas, elas podem estar certas ou erradas em termos práticos, no sentido de fazerem ou não o seu trabalho de comunicar as ideias que queremos transmitir. 

Assim, quando estamos escolhendo definições para as palavras, há alguns critérios que utilizamos, que chamo de “4 Cês” – Consenso, Clareza, Conveniência, e Consequências.

Consenso significa se todo mundo está [ou não] de acordo sobre a definição geral de uma palavra. Se todos pensam que uma palavra significa uma coisa, vai ser difícil utilizá-la com outro significado.

Clareza significa principalmente três coisas:

1. a definição faz sentido – em outras palavras, ela é coerente?

2. ela ajuda a esclarecer algum fenômeno importante do mundo real, e 

3. é uma formulação compreensível da definição, versus uma formulação confusa da mesma ideia. Por exemplo, você pode definir o seu dedo anelar como sendo o terceiro dedo depois do polegar, ou pode defini-lo como sendo o dedo que não é o polegar, nem o indicador, nem o dedo médio e nem o mindinho, mas o outro – duas formulações diferentes para a mesma definição.

Conveniência significa coisas como: a definição que você está usando é uma forma fácil de transmitir a sua ideia – ela se encaixa nas associações gerais que as pessoas têm em torno dessa palavra e corresponde à utilização histórica recente, de forma que você possa ler facilmente livros mais antigos e fazer analogias históricas que as pessoas compreenderão? Ou você precisa se explicar sempre que usa a palavra e ela causa antagonismo e confusão em vez de transmitir a ideia que quer passar, devido a essa definição ter conotações que conflitam com a sua intenção?

E o mais importante, as consequências são o efeito da sua definição sobre a percepção das pessoas. A definição que você está usando ajuda as pessoas a verem conexões ou distinções importantes que dão a elas mais poder para navegar no mundo? Ou ela mistura coisas não relacionadas, ou divide coisas que deveriam permanecer juntas e te faz se concentrar em coisas superficiais que deixam as pessoas mais confusas, e incapazes de atingir os seus objetivos?

Em outras palavras, a sua definição dá às pessoas um cérebro-galáxia, ou um cérebro de pudim?

Sapir-Whorf

Em psicologia falamos sobre a hipótese Sapir-Whorf, ou relatividade linguística, a ideia de que as percepções das pessoas sobre a realidade são moldadas em parte pela linguagem que elas utilizam – assim, se você não tiver palavras para certas coisas na sua língua, você tende a não notar ou não pensar nessas coisas. 

Em algumas culturas, não há uma palavra ou mesmo um conceito para depressão. As pessoas dizem apenas que estão “cansadas”. Como resultado, elas não procuram aconselhamento, terapia ou psiquiatria, só descansam e dormem e tratam a depressão como fadiga, ou como se você fosse um fracote. Se você veio da Nigéria, Tailândia ou Índia, ou se tiver avós desses países, talvez reconheça tudo isso. 

Outro exemplo frequentemente discutido é que muitas culturas não têm uma palavra para a cor azul. 

O grego antigo, o hebreu antigo, o chinês antigo e o japonês antigo não tinham uma palavra para azul, e há várias culturas onde ainda hoje isso acontece, como os Himba que vivem na fronteira entre Namíbia e Angola. Os Himba vivem da criação de animais em um ambiente onde é realmente importante distinguir entre diferentes verdes e castanhos, mas não entre azuis e outras cores que aparecem com menos frequência.

A linguagem himba mistura azuis escuros com vermelhos, verdes e roxos escuros, e tons mais claros de azul com certos tons de verde. 

Em 2006 o psicólogo Jules Davidoff e a sua equipe fizeram experimentos com cores entre falantes de Himba e de inglês, onde lhes mostravam um conjunto de quadrados onde um era azul e o restante eram de vários tons de verde, e perguntavam qual dos quadrados era diferente. Depois mostravam outro conjunto de quadrados que eram todos de um mesmo tom de verde, exceto um que era de um tom de verde ligeiramente diferente. A maioria dos falantes de Himba avistaram imediatamente o quadrado verde diferente, mas tiveram mais dificuldade em achar o quadrado azul no meio do outro conjunto. Ao mesmo tempo, para os falantes de inglês ocorreu o oposto, todos eles perceberam imediatamente o quadrado azul, mas a maioria deles não reparou na tonalidade de verde diferente, ou então demorou um tempo para encontrá-lo.

O seu vocabulário molda aquilo que você percebe e o que você não nota.

Assim, quando se trata de palavras políticas, queremos definições que nos façam notar coisas importantes, em vez de obscurecê-las.

OK, então vamos aplicar os nossos critérios a algo fácil – a definição da palavra quadrado como uma forma geométrica fechada com quatro lados iguais. 

Essa é uma definição realmente excelente.

Primeiramente, é uma definição consensual. Praticamente todo mundo que utiliza a palavra “quadrado” sabe o que ela significa e se essa definição for apresentada, concordarão que ela é a definição correta. 

A definição também é clara: não é contraditória, faz sentido, e esta formulação específica da definição também é cuidadosa, concisa e rigorosa.

E como é clara e tem uma utilização consensual, ela é também bem conveniente. É uma maneira rápida e fácil de transmitir a ideia de uma forma com quatro lados iguais e ângulos retos usando uma pequena palavra. E a consequência dela é que, se aprender esta definição, você terá um conceito de quadrado e vai reparar mais facilmente em objetos com quatro lados iguais e ângulos retos, e poderá exercer todo tipo de arquitetura, engenharia, arte e design mais facilmente com esse conceito na sua cabeça.

Agora vamos dizer que por alguma razão começou a aparecer um monte de gente insistindo em usar a palavra quadrado para significar qualquer forma com quatro lados, independentemente do comprimento dos lados ou dos ângulos. Digamos que essas pessoas querem que nos concentremos igualmente em todos os quadrangulares – retângulos, losangos e quadrados.

Essa definição é cuidadosa e clara, e transmite um conceito geométrico importante – mas como vai contra a definição consensual, a sua utilização seria incrivelmente inconveniente. Toda vez que você falasse sobre quadrados, teria de gastar tempo explicando às pessoas a sua definição, em oposição à definição consensual. E se te apontassem para os livros didáticos antigos utilizando a outra definição, você teria de entrar numa discussão sobre como esses livros didáticos estariam antiquados e sobre como precisamos expandir o nosso foco para incluir todas as formas com quatro lados.

E se, com o tempo, de alguma maneira essa definição se tornasse consensual, então a consequência seria que não haveria uma palavra específica para aquilo que hoje chamamos de quadrados e as pessoas teriam menos facilidade para reparar e pensar neles. E se quiséssemos que alguém fizesse algo em forma de quadrado, todas as vezes teríamos de especificar “um quadrado com todos os lados iguais e ângulos retos”.

Governo

Quando se trata de termos políticos, o critério das consequências ganha um certo peso extra. Por exemplo, LuckyCat, que tem um canal bem legal no youtube, me perguntou de onde tirei a minha definição para a palavra “governo”. 

No segundo episódio desta série defini um governo como sendo uma pessoa ou um grupo de pessoas que fazem as regras e que forçam que elas sejam cumpridas em uma dada unidade política – e também apontei para o fato de que uma unidade política pode ser uma unidade política pública, como um Estado, mas que também pode ser uma unidade política privada, como um lar, ou um negócio – o que significa que se você é dono da sua casa, você é o governo dessa casa e se é dono de um negócio, é o governo desse negócio.

Eu não inventei esta definição, mas também não a copiei e colei a partir de lugar nenhum. O que fiz foi pegar a definição padrão e desviar a ênfase do Estado, a fim de salientar que o governo existe na esfera privada e não apenas na esfera pública.

Porque escolhi esta definição? Vejamos os nossos critérios.

Primeiramente, o consenso – se você procurar por “governo” em um monte de dicionários e enciclopédias, encontrará duas definições principais – uma definição geral que tem espaço para incluir unidades políticas privadas, e outra definição específica, que determina que o governo tem a ver com o Estado. Não sei onde encontrar estatísticas para a prevalência dessas diferentes definições, mas descobri que a maioria dos dicionários e enciclopédias utilizam a definição geral, só que geralmente com uma formulação que, ainda assim, enfatiza o Estado e outras unidades políticas públicas, como aldeias ou tribos.

Apenas o dicionário de inglês de Oxford (que é um negócio gigantesco, com 75 volumes) chegou a mencionar uma unidade política privada – o governo de uma escola, que aparece na sua seção de citações. 

Seja como for, a maioria das pessoas não consulta dicionários e enciclopédias para aprender o que significa uma palavra como governo, elas vão inferindo o significado a partir do contexto, normalmente nos meios de comunicação social, jornalismo político, universidade e conversas diárias.

E se olharmos para os meios de comunicação, jornalismo político e universidade, neles a palavra governo é utilizada quase exclusivamente para discutir o Estado. O mesmo se aplica às conversas diárias. 

Portanto, o consenso entre as pessoas comuns, jornalistas e acadêmicos parece ser a definição específica sobre o Estado, e o consenso entre dicionários e enciclopédias, a definição geral, mas quase sempre com uma ênfase principalmente no Estado. E dos livros sobre política só conheço um, Private government (“Governo privado”), de Elizabeth Anderson, que se concentra especificamente no governo em unidades políticas privadas.

Então, por que eu resisti à tendência quase consensual de dar ênfase ao Estado? Porque a formulei sem sequer mencionar o Estado? 

Vamos dar uma olhada nos outros critérios:

Clareza: tanto as definições gerais quanto as específicas sobre o estado são claras e coerentes. Ambas lançam luz sobre alguma coisa importante que existe no mundo real. 

E quanto à conveniência? Podemos nos referir ao fato de que historicamente era comum nos séculos XVIII e XIX (e anteriormente) utilizar a palavra governo para se referir a qualquer tipo de autoridade, e no livro de Anderson ela comenta sobre a correspondência do presidente dos EUA John Adam com a sua esposa, Abigail, sobre a sua famosa Carta “All Men Would be Tyrants” (“Todos os homens seriam tiranos”). Nessa correspondência, ele usa a palavra governo para descrever a autoridade doméstica, a autoridade do empregador sobre o empregado, a autoridade do mestre sobre o escravo e a autoridade do professor sobre o estudante.

Mas estamos agora na década de 2020, e a maioria das pessoas não está lendo esse tipo de texto – porque iríamos querer ressuscitar uma definição mais antiga que pode fazer com que as pessoas tenham de parar e pensar um pouco quando você a utilizar?

A resposta está no critério das Consequências – porque a minha definição faz com que as pessoas tenham que de fato parar e pensar sempre que eu a uso! Restringir a palavra governo inteiramente à esfera pública estatal nos faz ignorar completamente a forma como muitos e muitos dos mesmos princípios e dinâmicas que se aplicam ao governo dos Estados também se aplicam a nós nos nossos locais de trabalho, nas nossas famílias e escolas.

Por exemplo, as unidades políticas privadas podem ser democráticas ou podem ser ditatoriais, assim como os Estados. Uma grande empresa cooperativa é uma democracia representativa, e uma empresa comum é uma ditadura com opção de saída, assim como a Suécia é um Estado democrático representativo e a China é um Estado ditatorial com opção de saída. [2] Os Estados têm conflitos de classe entre o governo e os cidadãos que possuem interesses diferentes, assim como as empresas têm conflitos de classe entre os trabalhadores e os proprietários e a administração – que são o governo das empresas privadas.

Os Estados têm leis e constituições e os cidadãos privados têm contratos, que são basicamente apenas leis e constituições privadas com regras e mecanismos para a sua aplicação. Todos sabemos que o conteúdo dos contratos reflete o relativo poder de negociação das duas partes, mas não pensamos em como as leis e constituições públicas refletem o relativo equilíbrio de poder entre os diferentes atores em uma unidade política pública – trabalhadores, proprietários, agricultores, inquilinos, senhorios, homens, mulheres, idosos, jovens, setores específicos, etc. E tal como os contratos, as leis só valem alguma coisa se for possível garantir o seu cumprimento.

Para controlar os seus cidadãos, os governos estatais utilizam muitas das mesmas técnicas que os proprietários de empresas utilizam para controlar os seus trabalhadores. E os cidadãos utilizam muitas das mesmas técnicas para obter dos Estados a legislação que desejam que os trabalhadores ou sindicatos utilizam para obter dos seus empregadores as concessões que desejam. 

Governo é governo e política é política – os mesmos princípios e categorias analíticas se aplicam, em ambos os casos.

Enxergar essas ligações te dá poder; não enxergá-las retira de você esse poder. Cérebro de galáxia versus cabeça de pudim.

E como não há outra palavra na língua [inglesa, mas nem na portuguesa] para governo privado, se não alargarmos o termo “governo” para incluir a esfera privada, então não teremos palavras para o conceito de governo privado, o que significa que ele se torna uma força quase invisível nas nossas vidas – como o quadrado azul para os himba, ou o quadrado com a tonalidade ligeiramente diferente de verde para os falantes de inglês. 

Quando o Estado te espiona e controla o que você faz ou diz, isso é considerado uma opressão à qual se deve resistir, mas quando empresas privadas te espionam, censuram ou controlam o que você faz, é simplesmente a maneira como o mundo funciona, e se você não gosta, arranje outro emprego ou comece o seu próprio Facebook, ou o seu próprio Youtube.

Se o seu vídeo for bloqueado numa plataforma semi-monopolista como o YouTube, quase ninguém vai assistir o seu vídeo, o que na prática é o mesmo que quando um Estado como a China bloqueia o seu vídeo. Porém, devido à nossa definição atrofiada de governo, esperamos que a liberdade de expressão e outros direitos constitucionais se apliquem com relação ao Estado, mas não em relação aos monopólios privados. Quando percebemos que os diretores e proprietários de empresas privadas são de fato governos que regulam as vidas de milhões de trabalhadores e consumidores, podemos querer começar a pensar em coisas como estender os direitos constitucionais à esfera privada.

Agora, há argumentos em defesa de que não façamos isso, e vamos dar uma olhada neles quando falarmos sobre capitalismo e direitos de propriedade privada, mas mal podemos sequer levantar uma questão como essa se pensarmos que governo é só sobre o Estado.

E devido a essas consequências, eu reavivei a ênfase do uso geral e histórico do termo governo, e daí uso o termo “o governo” ou “governo público” para me referir ao governo estatal, e o termo “governo privado” para me referir a qualquer outro tipo de governo. 

Exatamente a mesma lógica se aplica à razão pela qual utilizei a definição mais ampla de “política” como sendo a tomada de decisões em grupos, ao invés da definição especificamente estatal de política, que é muito mais popular no jornalismo e na academia, embora haja uma tendência para se encontrar a definição geral em dicionários e enciclopédias.

Racismo

Dentro de alguns minutos veremos como as diferentes definições de esquerda e direita têm consequências extremamente diferentes em termos de percepção, mas primeiro quero olhar para as definições concorrentes para a palavra “racismo” para realçar o critério da conveniência.

A palavra racismo surgiu no início do século XX como uma versão do termo “racialismo”, que era usado na mesma época e que tinha sido popular no final do século XIX, em conexão com todas as teorias científicas raciais que eram populares naquela época. O termo tornou-se mais popular nos anos 20 e 30 com a ascensão do nazismo e do fascismo, e especialmente após a Segunda Guerra Mundial, quando grande parte da academia passou a se preocupar com a tentativa de compreender o que levou ao holocausto. E depois o termo tornou-se o mais prevalecente durante a ascensão do movimento dos direitos civis para os negros nos Estados Unidos nos anos 50 e 60.

Até recentemente, havia duas definições padrão de racismo que eram utilizadas de forma mais ou menos intercambiável. Uma definição geral, que apenas significava uma hostilidade ou antipatia para com uma determinada raça – e uma definição mais específica, que significava a crença de que existem raças humanas biologicamente diferentes, que essas raças possuem características distintas que determinam as respectivas culturas e comportamento dos seus membros, e que algumas raças são superiores a outras de várias maneiras que lhes dão direito a mais riqueza, mais poder ou mais direitos do que às raças inferiores. 

Em 1967, dois líderes do Movimento Black Power Americano (ou Movimento Americano do Poder Negro), Stokely Carmichael e Charles V. Hamilton apresentaram a ideia do Racismo Institucional ou Racismo Sistêmico, que é quando as instituições e sistemas de poder tratam as pessoas de maneira favorável ou desfavorável de acordo com a sua classificação racial (de forma consciente ou inconsciente) – por exemplo, nos EUA de hoje, os afro-americanos e os americanos brancos tem uma taxa de uso de marijuana aproximadamente equivalente, mas os afro-americanos são presos por causa dela cerca de 4 vezes mais frequentemente que os brancos, por uma série de razões.

Na década de 1970, alguns educadores e acadêmicos brancos anti-racistas inventaram e começaram a popularizar uma nova definição da palavra racismo, que eles definiam como uma abreviação de “preconceito mais poder”, que é basicamente o mesmo conceito que racismo institucional. 

Esta nova definição tornou-se quase padrão nos departamentos de humanidades nas universidade nos últimos 10 anos, mais ou menos, e é também popular entre certos grupos de militantes, mas ainda é largamente desconhecida fora desses círculos.

Essa nova definição é clara e concisa, mas tem enormes problemas no departamento da conveniência, porque a esmagadora maioria da população que frequentou a universidade antes de 2010, ou que nunca frequentou a universidade, têm profundamente enraizadas nas suas cabeças uma das definições clássicas. 

Como resultado, vemos o mesmo cenário se repetindo de novo e de novo (e eu mesmo já vi isso ocorrer várias vezes) – temos uma pessoa com formação universitária mais recente conversando com uma pessoa com uma formação mais antiga ou com alguém que não frequentou a universidade, e a pessoa mais jovem diz algo como “bem, os negros não podem ser racistas” e a pessoa mais velha fica tipo “Quê? Então falta nelas uma parte do cérebro? Ou elas são como unicórnios mágicos? Essa não é uma ideia racista?” e daí os estudantes ficam ofendidos ou começam a explicar o conceito de preconceito mais poder, e a pessoa mais velha responde que “não, o racismo é um sentimento ou uma atitude, qualquer ser humano pode ser racista – só porque alguém é oprimido não significa que ela não tenha os mesmos sentimentos que eu” e depois acabam tendo uma longa discussão distorcida sobre como os judeus podem ser racistas contra os árabes em Israel, mas quando vivem em Marrocos já não seriam mais racistas, estariam apenas praticando discriminação – e todo mundo fica cada vez mais irritado uns com os outros. 

Contudo, se você tentar recomeçar a mesma conversa, mas dessa vez usando o termo “racismo institucional”, a pessoa mais velha compreende imediatamente o que se passa – e se o estudante disser algo como “nos EUA o racismo institucional só oprime as pessoas negras e só beneficia as pessoas brancas, nunca o contrário” pode haver uma discussão sobre o assunto, mas todo mundo sabe do que o outro está falando e todos podem ter a sua discussão ou a sua argumentação sem necessidade de ter de começar com uma irritante e confusa discussão pré-argumentação de 45 minutos sobre a definição de racismo.

As pessoas que insistem em utilizar a nova definição vão argumentar que toda essa dor de cabeça inconveniente vale a pena devido ao critério das consequências – por exemplo, a nova definição força os grupos dominantes a se concentrar mais na forma como se beneficiam pessoalmente do racismo institucional e foca o nosso olhar sobre questões sistêmicas e não sobre personalidades e sentimentos individuais. Eles argumentam que podemos usar a palavra discriminação para falar de preconceitos e antipatia em um nível individual.

Agora, você pode escolher a definição que mais lhe agrada – porém – mudar a definição de uma palavra que a maioria das pessoas entende de uma determinada maneira, para que ela signifique algo para o que já temos uma palavra é extremamente inconveniente – portanto, se você vai fazer isso, é bom que as consequências valham a pena. 

Pessoalmente, penso que a definição mais recente é um fracasso completo como instrumento de comunicação se você estiver interessado em falar sobre racismo com alguém fora de uma universidade, mas daqui a 20 anos, se essa definição se tornar o consenso, então ela já não será inconveniente. Eu ainda teria um problema no nível das consequências porque penso que essa definição implicitamente desumaniza e fetichiza as pessoas oprimidas, mas isso sou só eu!

Esquerda e direita [diferentes definições]

OK, vamos então dar uma olhada nas consequências das diferentes definições de esquerda e direita. Portanto, porque sou tão inflexível que hierarquia versus igualdade representa a melhor definição, até mesmo a definição correta?

Mais uma vez, vejamos os nossos critérios de escolha das definições – consenso, conveniência, clareza e consequências.

Quanto ao consenso, ele não existe, temos todas essas definições concorrendo entre si. 

Ninguém nunca sentou e inventou o conceito de esquerda e direita apresentando uma definição específica, como fiz com o termo “paladras[1] no primeiro episódio desta série. Foi uma analogia com a Revolução Francesa de 1789, com base em qual lado da Assembleia Nacional os delegados a favor e contra a revolução ficaram sentados ou em pé – os revolucionários à esquerda, os monarquistas à direita. É preciso inferir o significado dessa analogia a partir da forma como as pessoas a utilizavam.

Conveniência histórica

E quanto à conveniência?

No próximo episódio veremos que historicamente, desde a Revolução Francesa até a Guerra Fria, o uso consensual de esquerda e direita era consistente com hierarquia versus igualdade e não com qualquer uma das outras definições.

No entanto, só porque algo foi usado de uma certa forma historicamente, isso não significa que faça qualquer sentido continuarmos utilizando esse algo do mesmo jeito atualmente. No inglês antigo, a palavra “silly” significava originalmente “feliz”; depois ela significou “afortunado” ou “abençoado”, e depois significou “piedoso”, e depois significou “inocente”, e depois “inofensivo”, e depois “fraco”, e depois “tolo” e agora significa “absurdo” ou “ridículo”. A definição original é clara e precisa, mas também é completamente inconveniente porque a palavra possui um significado completamente diferente e totalmente consensual hoje em dia. A utilização da definição antiga deixaria todo mundo confuso e irritado e ninguém saberia do que você estaria falando, você apenas soaria como um idiota pretensioso e irritante.

No caso de esquerda e direita, porém, há um forte argumento sobre conveniência para que nos agarremos à definição histórica original – porque na política nós estamos constantemente fazendo analogias históricas e lendo textos históricos, e constantemente nos referimos a exemplos históricos de esquerda e direita. Assim, nós falamos frequentemente sobres os “nazis” e os “comunistas”, e chamamos as pessoas de “fascistas” e estamos assistindo um renascimento do “socialismo” e do “populismo” de esquerda e de direita, e ainda nos referimos à Revolução Francesa e à Revolução Bolchevique e temos um movimento “anarquista” e um movimento “libertário” capitalista e tudo isso já foi classificado historicamente como sendo esquerda e direita de maneiras congruentes com o conceito de hierarquia versus igualdade, mas não com nenhuma das outras definições.

Por exemplo, seria inconveniente e causaria confusão se de repente tivéssemos de começar a pensar nos nazis como esquerdistas, e nos anarco-comunistas como direitistas, que é onde os colocaria a definição do espectro político como sendo governo grande versus governo pequeno. E teríamos de começar a colocar o monarquista absolutista e feudal na esquerda, mesmo que as forças da monarquia na Revolução Francesa fossem a ala direita original, a própria coisa contra a qual a esquerda original se revoltou. Todas as definições que não sejam hierarquia versus igualdade misturariam quem tradicionalmente classificamos como estando à esquerda e à direita. 

Portanto, hierarquia versus igualdade vence no critério de conveniência histórica, e ainda hoje está em uso, o que também ajuda.

Mercado versus estado: incoerente

Portanto, conveniência e consenso já foram, agora vamos olhar para a clareza. Aqui as coisas começam a ficar interessantes. Lembre-se que clareza significa que a definição é clara no sentido de que é fácil de se compreender, coerente, e que lança luz sobre algum fenômeno importante. 

Comecemos com mercado versus Estado. Ela é fácil de entender, mas será que é coerente? Será que o mercado e o Estado são realmente opostos entre si?

Lembre-se de que estamos conversando sobre um espectro político, o que significa que devemos nos mover entre dois pólos opostos, algo como frio versus quente, para cima versus para baixo. Mesmo um espectro de cores é um espectro entre comprimentos de ondas visíveis, de frequências altas ou baixas. Os espectros exigem opostos: não se pode ter um espectro entre Pizzas e Maçãs, ou frio versus amarelo. 

E quanto ao Estado e o mercado? O termo “o mercado” refere-se ao conjunto de escolhas que as pessoas fazem em termos da troca de recursos num determinado contexto. Não vou definir o Estado neste momento porque é complicado e ainda não decidi por uma definição satisfatória – mas certamente o Estado não é o oposto do mercado, nem é incompatível com o mercado. O Estado é, na verdade, o contexto em que a maioria dos mercados existe atualmente.

O Estado pode impor restrições ou limitações às escolhas que as pessoas fazem em relação à troca dos seus recursos, e ele pode até extinguir por completo um mercado, ao tornar realmente onerosa a própria troca dos seus recursos – por isso, nessas situações, o Estado pode ser oposto ao mercado. Mas o Estado também pode ser utilizado para encorajar os mercados ou mesmo para torná-los possíveis, para início de conversa.

Por exemplo, ter regulamentos de segurança alimentar para fábricas de processamento alimentício e restaurantes pode aumentar os custos de venda dos alimentos, o que pode diminuir as vendas, ou impedir algumas pessoas de abrir empresas no ramo de alimentação – mas ao mesmo tempo, se as pessoas estiverem constantemente sofrendo com intoxicações alimentares sempre que saem para comer ou comprar comida na mercearia, então é a ausência desses regulamentos o que estaria asfixiando os mercados, uma vez que menos pessoas se dariam ao trabalho de correr esse risco.

Mesmo a maioria dos que se denominam capitalistas libertários acreditam na manutenção de alguma forma de Estado, apesar da própria existência de um Estado violar os princípios fundamentais do capitalismo, como vimos brevemente no segundo episódio. Isso porque se não houver tribunais com financiamento público forçando o cumprimento de contratos ou a polícia com financiamento público para fazer cumprir os direitos de propriedade, então as pessoas que não podem pagar pelos seus próprios exércitos privados ou tribunais privados terão medo demais de entrar em contratos ou de realizar trocas de bens e serviços, exceto com os seus amigos de maior confiança e em curtas distâncias, porque o risco de serem enganados e roubados será elevado demais para a maioria das pessoas, na maior parte do tempo.

E por vezes nem sequer é possível existir um mercado sem o Estado. Um exemplo famoso é a Roma antiga, onde havia um comércio florescente por toda a Europa e rumo a África e Ásia, em grande parte porque Roma construía, dava manutenção e protegia estradas enormes em todos os territórios que controlava. No entanto, quando a parte ocidental do Império entrou em colapso, e não havia ali nenhum Estado para manter e proteger as estradas, já não era mais possível o transporte de bens através de longas distâncias por terra, a menos que você tivesse o seu próprio exército privado para combater os bandidos. E mesmo que você tivesse um exército privado, ainda assim você não conseguiria fazer comércio que passasse pelo crescente número de estradas que já não eram transitáveis, porque ninguém dava manutenção. 

Como resultado, as viagens de longa distância e o comércio por terra basicamente pararam, e o compartilhamento de conhecimentos e de competências através de longas distâncias parou junto. As economias tornaram-se extremamente locais, as competências e as artes se deterioraram e desapareceram, sem acesso a grandes escolas ou grandes mestres para ensinar estudantes para além de áreas locais. A Europa Ocidental deixou de ser uma civilização mundial avançada para se tornar uma zona rural retrógrada. Isso durou centenas de anos, até que ressurgisse uma consolidação política suficiente e os Estados europeus se tornassem maiores, e novamente capazes de manter e proteger estradas de longa distância e rotas comerciais. 

O Estado não é o oposto do mercado, o Estado é apenas um outro contexto no qual um mercado existe. É como o clima – o bom tempo pode facilitar ou encorajar os mercados e o mau tempo pode desencorajar o comércio e sufocar os mercados, como durante uma nevasca ou uma grande tempestade no mar.

Assim, o paradigma Estado versus mercado é um enorme fracasso no critério de clareza. Em vez de lançar luz sobre um fenômeno real, cria um falso binário e nos faz assumir que duas coisas seriam opostas entre si, quando não o são, o que nos deixa mais confusos e menos inteligentes. É um gerador de cérebro de pudim.

Igualdade versus liberdade: incoerente

E quanto a igualdade versus liberdade? Esses são opostos? As pessoas de direita insistirão que sim, e que a única forma de se conseguir alguma igualdade seria através da intervenção de um poder estatal gigantesco que sufoque a liberdade, e vão apontar a União Soviética e outros países ditos comunistas como os exemplos definitivos disso. 

Mas se você perguntasse isso para os revolucionários franceses, ou para quase todos os socialistas ou anarquistas até à ascensão da União Soviética, eles lhe diriam que não existe liberdade se não houver igualdade, porque as pessoas com mais poder utilizam esse poder (seja ele poder estatal, poder econômico ou poder cultural) para dominar as pessoas com menos poder, reduzindo assim a sua liberdade. 

É como o fato de que é o seu chefe que lhe diz o que fazer o dia inteiro, e não o contrário, porque o seu chefe tem mais riqueza do que você, que é a razão pela qual você entrou num contrato que lhe tira a liberdade durante 8 ou mais horas por dia em troca de dinheiro para viver. Ou como o fato de que o governo pode dizer a você e ao seu chefe o que vocês podem ou não podem fazer, exatamente pelas mesmas razões. Quer se trate da desigualdade entre o seu chefe e você, ou entre o Estado e você e o seu chefe, a desigualdade econômica é a principal fonte de desigualdade política – isto é, de desigualdade na tomada de decisões.

É por isso que o slogan da Revolução Francesa era Liberté, Égalité, Fraternité – liberdade, igualdade e fraternidade (ou irmandade). É preciso o senso de parentesco e irmandade para se manter a igualdade, e é preciso a igualdade para se ter e salvaguardar a liberdade. E esse é apenas o slogan mais famoso de que hoje nos recordamos – havia outros slogans flutuando entre os revolucionários da época – liberdade, igualdade, segurança – liberdade, igualdade, propriedade – liberdade, igualdade, força – liberdade, razão, igualdade – mas liberdade e igualdade eram sempre vistos como inseparáveis. A ideia de que elas seriam opostas só se torna popular com a Guerra Fria e a ascensão dos países ditos comunistas, que justificavam os seus poderes ditatoriais em nome da imposição da igualdade. 

Na Revolução Francesa eles estavam pensando particularmente na igualdade política e cultural, mas isso se aplica igualmente, senão até mais, à igualdade econômica.

Agora, há uma questão legítima sobre como fazer cumprir a igualdade sem algum poder estatal gigante que esmague a liberdade – mas os anarquistas e os socialistas têm apresentado ideias sobre isso pelos últimos duzentos anos, mais ou menos, e no futuro vamos dar uma olhada nessas ideias, bem como em alguns exemplos históricos e antropológicos. Mas mesmo que a relação entre liberdade e igualdade seja complicada, não são de modo algum opostos – e o que é muito menos complicado é a relação entre liberdade e desigualdade.

Seria muito mais fácil propor um espectro entre liberdade versus desigualdade e demonstrar um milhão de exemplos históricos e antropológicos onde quanto mais desigualdade existir, mais servidão e escravidão existirá – é praticamente uma correlação de 1 para 1!

É por isso que os adeptos daquilo que chamam de capitalismo libertário possuem uma definição bem peculiar de liberdade, na qual assinar um contrato terrível por puro desespero, se colocando numa posição de servidão abjeta é considerado um ato voluntário e de liberdade, como veremos em episódios futuros.

De qualquer maneira, igualdade versus liberdade é outro falso binário que fracassa no teste de clareza, e que recebe outro prêmio cabeça-de-pudim.

Governo grande versus governo pequeno

E quanto a governo grande versus governo pequeno? Agora sim, estamos falando de um conceito coerente! De fato, tratam-se de dois opostos! Portanto, esse par passa na parte mais básica do teste de clareza. 

Mas será que ele esclarece um conflito ou divisão importante que realmente existe na política? Se olharmos à nossa volta e através da história, será que realmente veremos uma enorme luta entre as pessoas que estimam um grande governo e aquelas que adoram governos pequenos? 

Não, não veremos. Os mesmos partidos de direita que querem se livrar do governo quando se trata de regular empregadores, mercados e empresas, adoram um governo ENORME quando se trata de vigilância, militares, a polícia, a imigração, e para regular onde alguém vai colocar seu pipi. E aí você tem os partidos de esquerda, que tipicamente querem que o governo não chegue perto do seu pipi e do seu quarto, e que o Estado seja reduzido em termos militares, policiais e de controle de imigração, ao mesmo tempo em que querem reforçar ao máximo o Estado no que diz respeito a impostos, prestação de cuidados de saúde e educação, etc.

Assim, tanto o governo grande quanto pequeno estão em ambos os lados da divisão esquerda-direita. Os políticos de direita nos EUA e nos outros países anglo-saxónicos podem gostar de falar sobre governos grandes versus pequenos, mas o verdadeiro conflito é sobre o que devemos fazer com o governo, e não sobre o tamanho dele.

Um espectro político baseado em governos grandes versus pequenos falha no critério de clareza, na medida em que não esclarece do que se trata o verdadeiro conflito político. Erra o alvo, e faz com que você se concentre em um aspecto superficial sobre a dimensão do governo – ao invés de se concentrar no verdadeiro conflito: para que serve o governo, para promover a igualdade ou para proteger as hierarquias?

Tanto os socialistas libertários de esquerda quanto os capitalistas libertários de direita se opõem ao Estado – mas por motivos completamente diferentes. Que razão é essa? Um espectro de esquerda-direita baseado em governos grandes versus governos pequenos não nos fornece qualquer perspectiva sobre isso, e coloca ambos os lados no mesmo time.

Concentrar-se em governo grande versus governo pequeno é como se tivéssemos um monte de armas vermelhas e azuis e um monte de frutas vermelhas e azuis, e aí nós dividíssemos tudo em “coisas vermelhas” versus “coisas azuis”, em vez de armas versus frutas. 

Cérebro de pudim!

Indivíduo versus coletivo

Tudo o que acabei de falar sobre governo grande versus governo pequeno pode ser aplicado à definição de indivíduo versus coletivo, que é bastante popular entre os libertários. 

Claramente são opostos, então a definição é coerente, mas não reflete uma clivagem real entre as forças políticas. Os partidos políticos e coalizões de direita e de esquerda querem mais coletivismo e mais individualismo, só que em áreas diferentes. Os partidos de esquerda invocam o coletivismo em termos da nossa responsabilidade econômica de uns para com os outros, ou seja, para pressionar por uma maior igualdade econômica. 

Os partidos de direita invocam o coletivismo em termos de identidade nacional versus nações concorrentes ou versus imigrantes, ou versus grupos raciais, étnicos ou religiosos concorrentes – ou seja, para impor hierarquias culturais. Os partidos de direita também invocam o coletivismo para fomentar um sentido de solidariedade entre ricos e pobres do mesmo grupo identitário, [3] reforçando assim a hierarquia econômica. 

Os partidos de esquerda invocam o individualismo em termos da promoção da igualdade das liberdades pessoais individuais, como os direitos à liberdade artística, sexual e religiosa, à liberdade de expressão, etc. Já os partidos de direita tendem a invocar o individualismo em termos do direito dos indivíduos a acumularem o máximo de riqueza possível – ou seja, para aumentar a hierarquia econômica.

Não se vêem coalizões de partidos políticos onde uma pessoa diz algo como “eu acredito na responsabilidade coletiva pelas necessidades econômicas de cada pessoa” e outra pessoa diz algo como “acredito na superioridade coletiva da raça branca sobre as raças mestiças” e aí elas se juntam e dizem “ei, ambos amamos o coletivismo, vamos construir um partido político juntos!”

Hierarquia versus igualdade: clareza

A única definição de esquerda e direita que esclarece uma divisão política real é hierarquia versus igualdade.

Assim, se alguma vez você já se perguntou por que razão partidos de direita ou coalizões de partidos de direita frequentemente apresentam essa aliança aparentemente contraditória entre grupos religiosos que querem que o governo se certifique de que você só faça sexo quando estiver casado junto de grandes grupos empresariais e libertários que adorariam poder utilizar pornografia extrema em propagandas de pasta de dentes para crianças – o fio condutor comum que interliga esses grupos aparentemente opostos é a hierarquia – eles apoiam as classes econômicas e culturais dominantes – os grupos empresariais querem que o governo promova mais hierarquia econômica, e os grupos religiosos querem que o governo imponha mais hierarquia cultural. E esses diferentes tipos de hierarquias reforçam umas às outras de várias maneiras, de modo que essas pessoas tenderão a se unir quando confrontadas por coalizões igualitárias, apesar das suas contradições internas e das suas discordâncias, mesmo que eles não pensem sobre si mesmos como estando interessados na hierarquia ou mesmo que jamais pensem sobre hierarquias.

Do mesmo modo, nos partidos políticos de esquerda ou coligações de partidos à esquerda, tipicamente vemos alianças entre minorias sexuais e grupos feministas, por um lado, e minorias étnicas e imigrantes, por outro, que são muitas vezes conservadores em questões religiosas ou culturais e que não estão realmente muito entusiasmados em dar mais direitos às pessoas trans, gays e mulheres. E ambos os grupos geralmente estão aliados com os trabalhadores organizados nessas coalizões de esquerda, o que parece totalmente alheio aos direitos dos homossexuais, ao feminismo e aos direitos dos imigrantes. 

Mas o que une esses grupos na esquerda, é o fato de que apesar dos seus desacordos e contradições, todos eles querem mais igualdade para os seus membros em relação às hierarquias econômicas e culturais estabelecidas.

Um espectro político de esquerda-direita baseado em hierarquia versus igualdade nos auxilia a explicar essas alianças facilmente. As outras definições não nos dão qualquer perspectiva nesse sentido. Só pudim.

Consequências: hierarquia versus igualdade

Onde a coisa fica realmente interessante, porém, é quando olhamos para o critério das consequências – as consequências sobre a nossa percepção. O critério das consequências nos ajuda a compreender porquê tantas definições ruins para esquerda e direita, que fracassam no critério de clareza ainda assim são tão prevalecentes. Quando ideias ruins são populares, normalmente isso ocorre porque ou elas preenchem algum tipo de necessidade psicológica, ou servem aos interesses de algum grupo poderoso.

Assim, em termos de consequências, um espectro baseado em hierarquia versus igualdade nos faz notar hierarquias à nossa volta, e nos faz notar que algumas pessoas não gostam dessas hierarquias. Nos faz pensar em argumentos a favor e contra as hierarquias existentes. 

E, nesse sentido, esse espectro enquadra o mundo em termos de esquerda, porque reparar em hierarquias, pensar em hierarquias e na oposição às hierarquias pode te fazer questionar essas hierarquias – versus a opção de nem sequer perceber que as hierarquias existem, para início de conversa. 

É por isso que os autores que ainda usam o paradigma de hierarquia versus igualdade tendem a ser socialistas ou, de alguma outra forma, estar à esquerda, como Noam Chomsky ou Corey Robin, com a notável exceção do Professor Doutor Jordan Peterson [4] à direita.

Consequências: todo o resto

E quanto às consequências de todas as outras definições sobre as nossas percepções? 

Já chamamos a atenção para o fato de que elas te fazem se concentrar em superficialidades e perder o panorama geral – só que elas não só te deixam confuso e cego, mas também te deixam confuso e cego de um jeito específico, que enquadra o mundo em termos de direita – especificamente, em termos de direita que beneficiam as classes de elite no topo das hierarquias dos países capitalistas ou de países do comunismo de Estado no estilo soviético!

Veja, por exemplo, o paradigma de mercado versus Estado. 

Os grandes proprietários de empresas e os think tanks, lobistas e comentaristas de televisão da direita que os servem, adoram gritar contra regulações e leis que interferem na sua capacidade de maximizar seus lucros. Contudo, apesar de todo o seu dinheiro, poder e influência, eles têm um grande problema – as pessoas possuem o direito ao voto, e muitas dessas regulações, proteções dos trabalhadores e salário mínimo de que eles querem se livrar são muito populares.

É difícil conseguir que as pessoas votem a favor de baixar os seus próprios salários, aumentar os seus aluguéis ou de permitir que o seu chefe possa exigir que você faça cocô em fraldas no trabalho, se quiser manter o seu emprego.

Bem, se você inventar toda uma ideologia sobre como o mercado seria essa força mágica sobrenatural que nos traz toda a riqueza de que desfrutamos e todas as liberdades que amamos, e que por definição ele nunca pode fazer nada de errado, e que o Estado seria essa tirania maligna e terrível interferindo no mercado sagrado, escravizando todo mundo e arruinando a sua vida, e que por definição ele nunca pode fazer nada de bom – bem, aí sim você consegue convencer as pessoas a votarem em candidatos que apoiam o corte do salário mínimo e de leis que impeçam o seu chefe de exigir que você faça cocô em fraldas.

O mesmo ocorre com indivíduo versus coletivo. Qualquer sociedade humana tenta equilibrar os dois lados. Tanto o coletivismo completo quanto o individualismo completo seriam vistos como formas de insanidade na maioria das sociedades.

No entanto, se você conseguir convencer as pessoas de que o coletivismo seria o puro mal – nada além de uma ilusão justificando a tirania cega da maioria oprimindo o indivíduo, e que coisas como impostos e programas sociais seriam subornos por tiranos invocando o coletivismo para controlar as massas – e que a única coisa que garante à qualquer pessoa a verdadeira liberdade é a posse de propriedade – então elas ficarão encantadas quando os políticos se livrarem do salário mínimo, das pausas obrigatórias para uso do banheiro e à medida que eles sigam baixando os impostos para os ricos.

O mesmo vale para governo grande versus governo pequeno, ou liberdade versus igualdade.

Todos esses paradigmas fazem parte de uma narrativa de guerra de classes concebida para te fazer odiar tudo o que puder beneficiar os trabalhadores às custas dos seus patrões, e amar tudo o que for beneficiar os patrões à custa dos seus trabalhadores. Toda regulação que tentar te dar mais poder e dinheiro só te deixaria mais pobre e mais escravo do Estado tirânico – a única maneira real de melhorar a sua vida seria ser mais útil para o seu patrão, ou tornar-se o seu próprio patrão.

Mas se você de fato iniciar o seu próprio negócio, e começar a avançar sobre uma fatia do mercado das grandes empresas que financiam todos os think tanks e institutos que promovem estas ideias, [5] verá que as mesmas empresas que dão um show de birra sempre que o governo aumenta os seus salários, não hesitarão por um segundo em usar o poder das regulações governamentais para esmagar a sua existência.

Não é surpresa que muitos desses amantes da liberdade em tempos bons sejam grandes fãs de ditaduras estatais assassinas quando esses ditadores usam os seus poderes tirânicos para apoiar os proprietários de empresas enquanto esmagam os trabalhadores. Assim, por exemplo, Milton Friedman, o grande odiador do governo, adorador do mercado, amante da liberdade, vencedor do prêmio nobel e guru do capitalismo do século XX se sentiu encantado em servir como conselheiro do brutal ditador Augusto Pinochet no Chile para ajudá-lo a impor à força o mercado supostamente livre.

Note que toda essa hipocrisia faz todo sentido num paradigma de hierarquia versus igualdade. 

Cérebro de pudim, versão soviética

Mas não são só os hipócritas capitalistas que ganham com essas definições! É só invertermos o estigma desses paradigmas absurdos, que obtemos uma justificativa equivalente no quesito cabeça-de-pudim para a tirania dos hipócritas à cargo na União Soviética.

Assim, ao invés de adorar de maneira idiota o mercado como um deus e demonizar o Estado, você adora de maneira idiota o Estado como um deus, e demoniza o mercado. Ao invés de venerar estupidamente o indivíduo e transformar o coletivo em uma conspiração de estatistas maléficos que querem poder, você venera estupidamente o coletivo e transforma o individualismo em uma conspiração de capitalistas que querem nos dividir, conquistar e escravizar. E ao invés de dizer que a desigualdade brutal é o preço que todos temos de pagar pela gloriosa liberdade, você diz que a ditadura é o preço que temos de pagar pela superioridade moral da igualdade, e a eventual promessa de liberdade.

Segundo essa narrativa, o mercado seria apenas caos e anarquia, dando aos ricos e poderosos todo o poder e o tirando das mãos dos trabalhadores, enquanto que o Estado seria o único instrumento que poderia levar a cabo a vontade racional do povo. O indivíduo seria egoísta, destrutivo e imoral, e o que separaria o ser humano moral dos animais é o fato de que os indivíduos são capazes de pôr de lado os seus interesses egoístas para servir à sua comunidade, como todos nós devemos fazer para servir o nosso glorioso país para que a nossa nação possa sobreviver contra os capitalistas maléficos que nos ameaçam, ou contra os nazis malignos que são na verdade apenas os capitalistas sem as suas máscaras. E tudo isso é a razão pela qual precisamos da liderança do partido comunista, que é composto pelos membros mais inteligentes e altruístas de toda a sociedade, de todos os grupos étnicos e origens sociais. [2]

Portanto, um espectro político de esquerda-direita baseado em mercado versus Estado, ou igualdade versus liberdade ou indivíduo versus coletivo pode ser incoerente, e pode te transformar num cabeça-de-pudim cego e incapaz de enxergar o que está acontecendo na frente da sua cara, mas te transforma no tipo de cabeça-de-pudim mais fácil de manipular para apoiar políticas que beneficiam as elites nos EUA e na URSS.

Na próxima

OK, já foi informação suficiente por hoje. 

Na próxima vez vamos finalizar o tema esquerda e direita, e faremos um pequeno passeio histórico para ver como as palavras esquerda e direita foram usadas em diferentes períodos no tempo, e depois veremos como Lênin e Trotsky mudaram a definição da palavra socialismo, o que poluiu a compreensão popular de esquerda e direita, e finalmente seremos capazes de responder à questão de porque o comunismo está no extremo esquerdo do espectro político e o nazismo está na extrema-direita, quando a Alemanha nazi e a URSS de Stálin pareciam ter semelhanças importantes.

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Até a próxima, nos vemos por aí!

Tradução: Everton Lourenço


Notas

[1] No original, “worbs“, uma palavra que o autor criou como uma distorção de “words” (“palavras”). Optei por “paladras” ao invés de “palabras” para não misturar com o espanhol e para brincar com a ideia de “ladra” também, já que elas roubam os sentidos das palavras e seu uso potencial para a compreensão da política na nossa vida. [N. do M.]

[2] evidentemente, algumas afirmações como essa podem ser mais polêmicas e levantar outros debates. Como deixamos bem claro no rodapé da página, não deixamos de publicar um artigo por discordarmos de algumas teses ou afirmações. [N. do M.]

[3] “Identitário” no sentido de um grupo que se conecta e que encontra sentido em torno de uma identidade compartilhada pelos membros, e na disputa com outros grupos diferentes. O autor não está usando “identitário” simplesmente como sinônimo para os diversos movimentos sociais que buscam reconhecimento e diminuição de desigualdades em contextos de discriminações em hierarquias específicas (apesar deles também serem grupos conectados a partir de identidades). [N. do M.]

[4] No original, o autor havia escrito “Peenerston”, que poderíamos adaptar para algo como “Pênisterson”, provavelmente uma piada sobre a visão de Peterson. [N. do M.]

[5] no original “os AEIs, institutos Hoover, Cato e Fraser, e Praeger U’s”. Como esses institutos são menos conhecidos no Brasil, poderíamos pensar em Instituto Millenium, MBL, Instituto Mises, Estudantes pela Liberdade, Brasil Paralelo, etc. [N. do M.]

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