Como sabemos o que esquerda e direita significam de verdade?

Até a Guerra Fria, o significado de esquerda e direita na política como igualdade versus hierarquia era mais ou menos bem compreendido. Durante a Guerra Fria outros pares de sentidos para essas palavras passaram a circular (mercado versus Estado, indivíduo versus coletivo, governo grande versus pequeno ou igualdade versus liberdade). Testar esses diferentes pares para tentar explicar as posições das pessoas que eram vistas (e se identificavam) como estando à esquerda ou à direita em diferentes momentos históricos é um bom exercício para avaliar quais definições de esquerda e direita se sustentam e quais só servem para causar confusão.

transcrição do podcast What is Politics (“O que é política”)

Imagem criada utilizando a IA Stabled Diffusion


Este artigo é a transcrição do episódio 5 do podcast What is Politics. É o terceiro de uma série em 3 partes discutindo os conceitos de esquerda e direita na política (e que se encaixa em uma série maior de Introdução à Política). Na primeira parte dessa série foram apresentados os significados históricos de esquerda e direita na política como sendo igualdade versus hierarquia. A segunda parte mostra como diferentes definições afetam nossa capacidade de visão e porque os significados originais de esquerda e direita continuam sendo melhores do que outros que circulam em debates nas redes sociais, em textos jornalísticos, no meio político e universitário. Esta terceira parte mostra como o par igualdade versus hierarquia é o único que consegue explicar as pessoas que eram vistas como estando na direita ou na esquerda em 3 momentos históricos diferentes (Revolução Francesa, República Francesa, Revolução Russa) antes da Guerra Fria, que foi o momento em que outros pares passaram a ser espalhados como se fossem o significado de esquerda e direita (mercado versus Estado, indivíduo versus coletivo, governo grande versus pequeno ou igualdade versus liberdade).


Olá, amiguinhos, e sejam bem vindos de volta ao “O Que É Política?”

No episódio 3, vimos que a maioria das sociedades humanas nos últimos 12.000 anos estiveram organizadas em hierarquias políticas, onde algumas pessoas possuem mais poder de decisão, mais riqueza e mais direitos do que outras pessoas. Vimos também que as hierarquias servem a três propósitos relacionados: elas facilitam a cooperação grupal eficiente, reduzem o conflito ao determinar antecipadamente os vencedores e os perdedores e também facilitam a exploração de membros menos poderosos da hierarquia pelos membros mais poderosos nela.

E então vimos que o espectro político esquerda-direita é sobre onde alguém se posiciona com relação a essas hierarquias. Se você apoia as desigualdades de uma determinada hierarquia por qualquer motivo, então você está à direita nessa questão, e se você se opõe a essas desigualdades, você está à esquerda.

Em outras palavras, o espectro político esquerda-direita trata do conflito de classes – com “classes” significando diferentes níveis em uma hierarquia – e essas classes e hierarquias podem ser políticas, econômicas, culturais e internacionais. Proprietários no topo, a gerência no meio, os trabalhadores na base; o governo no topo, cidadãos embaixo; em uma cultura patriarcal você terá os homens no topo e as mulheres na base; o rei medieval no topo, nobres no meio, servos na parte inferior.

No entanto, existem também várias outras definições populares do espectro político esquerda-direita flutuando por aí: mercado versus Estado, governo grande versus pequeno, indivíduo versus coletivo, igualdade versus liberdade.

No episódio 4, vimos como as palavras e definições são ferramentas de comunicação e como todas essas outras definições falham como ferramentas de comunicação de duas maneiras importantes:

1) elas são historicamente imprecisas, então elas causam confusão quando lemos livros históricos ou quando fazemos analogias históricas – e todo o conceito de esquerda e direita é uma analogia com o início da Revolução Francesa.

E, mais importante, 2) elas nos fazem focar em aspectos superficiais da política, que não nos dão nenhuma visão sobre as verdadeiras divisões e coalizões políticas que existem no mundo real.

Por exemplo, no mundo real não vemos grupos de esquerda ou de direita formando coalizões uns contra os outros com base no tamanho do governo ou em quanto coletivismo eles desejam – o que vemos é que as coalizões de esquerda querem um governo grande quando isso promove diferentes tipos de igualdade, como na defesa de mais programas sociais e querem um governo pequeno quando isso promove a igualdade, como uma regras de imigração mais brandas ou menos prisões. E as coalizões de direita querem um governo grande para impor hierarquias, como mais polícia e regras de imigração mais rígidas, e querem um governo pequeno quando isso promove hierarquias, como quando promovem o que chamam de “liberdade econômica”, que significa apenas mais hierarquia econômica, onde os proprietários de empresas fazem o que quiserem sem interferência do governo, e onde os trabalhadores têm apenas os direitos que seu nível de poder de barganha lhes conferir.

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Hoje examinaremos diferentes períodos históricos para ver quem foi classificado como estando em qual lado do espectro político em diferentes momentos, a fim de demonstrar a todos os “haters” do podcast que continuam me escrevendo argumentando sobre como esta ou aquela definição errada de esquerda e direita na verdade seria a correta que, além de nos deixar confusos, essas péssimas definições populares de esquerda e direita são também historicamente incorretas, e que elas só surgiram na época da Guerra Fria para fins de propaganda.

E isso nos dará as ferramentas de que precisamos para responder à pergunta frequente de por que o fascismo está na extrema direita do espectro político e o comunismo está na extrema esquerda, quando a Alemanha de Hitler e a União Soviética de Stalin pareciam ter muitas semelhanças importantes – ambas eram ditaduras  de mão pesada que escravizavam uma boa porção de seu povo, ambas usavam o nacionalismo para manter o poder do partido governante e ambas se engajaram com o imperialismo e em algum grau de redistribuição de riqueza. Mas faremos isso em um episódio bônus porque este já ficará bem longo!

Introdução histórica

OK, então vamos ao que interessa. Como sabemos que Hierarquia vs. Igualdade é o uso historicamente correto dos termos esquerda e direita?

Ninguém sentou, inventou esses termos e os definiu para nós em algum livro, e não há nenhum livro que rastreia a maneira como as pessoas usaram os termos ao longo do tempo para nos ajudar a descobrir isso – pelo menos não que eu saiba, e se você souber de algum, por favor me avise!

Os termos surgiram como uma analogia com a primeira inicial da Revolução Francesa em 1789, onde os delegados da Assembléia Nacional que apoiavam a revolução ficavam de pé ou sentavam-se no lado esquerdo do salão, e aqueles que apoiavam a monarquia e o status quo ocupavam o lado direito.

Quando você usa uma analogia como essa, está inferindo que há alguma característica marcante que vincula as pessoas a quem você se refere no seu tempo com os lados direito ou esquerdo da Assembléia Nacional de 1789, e é assim mesmo se você não estiver de fato consciente de qual seja essa característica, como se você meio que sentisse essa característica instintivamente, que é o que as pessoas fazem na maior parte do tempo. Então, o que há com populistas de direita contra populistas de esquerda, ou socialistas contra capitalistas, ou comunistas contra nazistas ou anarcocomunistas contra anarcocapitalistas que os vincula aos lados esquerdo e direito da Assembléia Nacional francesa de 1789?

Como não há nenhum livro específico para nos dizer qual é essa característica marcante, precisaríamos ler tooodos os livros. E como não temos tempo para passar tooodos os livros, vamos dar uma olhada em quem era considerado de esquerda e de direita em três períodos históricos diferentes:

Primeiro, a boa e velha Revolução Francesa, de onde se originaram os termos.

Em seguida, a 3ª República da França, cerca de 100 anos depois, onde as posições de assento da Assembléia Nacional foram conscientemente baseadas na analogia esquerda-direita com a Revolução Francesa.

E, finalmente, veremos quem era considerado à esquerda e à direita entre as várias ramificações do movimento socialista do final do século 19 até o início dos anos 1920, mais ou menos.

Além disso, a cada período testaremos se as definições populares de mercado versus Estado, indivíduo versus coletivo, governo grande versus pequeno ou igualdade versus liberdade fazem algum sentido como definições de esquerda e direita.

Europa tradicional

Comecemos com a Revolução Francesa.

Se quisermos entender os lados esquerdo e direito da Assembleia Nacional na Revolução Francesa, vai nos auxiliar a compreensão do que era aquilo que os revolucionários à esquerda estavam tentando derrubar, o que eles estavam tentando alcançar e o que os monarquistas à direita estavam tentando preservar.

O sistema que existia antes da Revolução Francesa, conhecido como Ancien Régime, significando Antigo Regime, “sistema antigo”, a “velha ordem”, era o ponto final da ordem social feudal que havia existido em grande parte da Europa desde o século X.

A grande cadeia do ser

De acordo com a ideologia dominante na Europa na Idade Média, que perdura até o período do Antigo Regime, o universo seria uma gigantesca hierarquia – a grande cadeia do ser, com Deus no topo, seus anjos abaixo dele, e depois o papa e os monarcas mundanos nomeados por deus abaixo deles, e então você tinha as três ordens da sociedade humana – o clero, a nobreza e as pessoas comuns abaixo deles. Em termos de ordem hierárquica na terra, você tinha o rei e o papa no topo, a nobreza e o alto clero abaixo deles, e então as pessoas comuns junto do baixo clero abaixo deles. E ainda mais abaixo estavam os animais, depois as plantas e então os minerais.

Cada uma dessas categorias abaixo de Deus tinha sua própria hierarquia. Os anjos eram divididos em serafins, classificados acima dos querubins, e depois havia diferentes categorias de nobres e de clérigos. Os homens eram classificados acima das mulheres, os adultos acima das crianças, os mestres acima dos aprendizes, os animais maiores acima dos animais menores, animais acima dos insetos, e as plantas tinham sua própria hierarquia, assim como os minerais – ouro acima da prata, por sua vez acima do bronze, que estava acima de outros metais básicos, até chegar nas rochas e na terra, no final.

Qualquer pessoa que tentasse usurpar seu lugar nessa hierarquia sem fim estaria se revoltando contra a natureza e contra o próprio Deus, colocando toda a cadeia em risco de ruir, assim como quando o anjo Lúcifer tentou desafiar Deus, desorganizando a perfeição do universo e cometendo o primeiro pecado.

No auge da Idade Média, essa ideologia hierárquica correspondia mais ou menos à realidade em termos de quem detinha o poder político, econômico e cultural. Um rei normalmente detinha mais poder, mais riqueza e mais status do que um nobre; um nobre geralmente detinha mais poder, riqueza e status do que um plebeu; um homem geralmente tinha mais poder e riqueza do que uma mulher, etc. As hierarquias políticas, culturais e econômicas da sociedade todas se reforçavam mutuamente – e como as leis dos Estados tendem a refletir o equilíbrio de poder dos diferentes atores de uma determinada sociedade, as leis dos Estados medievais refletiam e reforçavam essas hierarquias.

Porém, ao longo dos séculos, à medida que a Europa lentamente se recuperava da queda do Império Romano, as unidades políticas tornavam-se maiores e mais centralizadas e as estradas tornavam-se mais seguras, o que significava que o comércio e o conhecimento poderiam ser compartilhados por longas distâncias novamente, como acontecia nos tempos Romanos. Como resultado, a base do poder passou do controle da terra e da capacidade de espremer os camponeses para extrair grãos para a capacidade de acumular dinheiro de comércio, impostos e taxas. Como resultado, o aspecto de reforço mútuo das hierarquias do sistema foi lentamente sendo perturbado, e o equilíbrio real de poder já não refletia a ideologia oficial ou a lei.

Eventualmente, os comerciantes, que eram membros da ordem das pessoas comuns e que derivavam sua riqueza a partir do comércio (que ganhava cada vez mais importância), muitas vezes se tornaram mais ricos e mais poderosos do que muitos nobres, que estavam sendo espremidos até chegar na classe média ou mesmo até a pobreza, devido às regras de herança. e a crescente necessidade de dinheiro.

E à medida que a natureza da economia mudava, o rei precisava de mais dinheiro para administrar seu Estado e para travar suas guerras, e começou a vender títulos de nobreza por dinheiro para plebeus ricos, e a impor cada vez mais impostos que os plebeus tinham de pagar mas que a nobreza e o clero estavam isentos. E ainda que a maior parte da servidão já tivesse sido eliminada na França na época da Revolução Francesa, a nobreza e o clero ainda controlavam muitos recursos, como moinhos, florestas e terras das quais as pessoas dependiam. E como queriam dinheiro acima de tudo, eles impunham todo tipo de taxas e cobranças sobre os plebeus pelo direito de usar esses recursos, e outras taxas que os plebeus tinham de pagar praticamente a cada vez que espirravam, como o dízimo, que era e ainda é um imposto anual que as pessoas tinham de pagar à igreja católica apenas por estarem vivas.

Assim, quando a Revolução começou em 1789, como resposta a uma série de crises, fomes e guerras com as quais o rei lidou de maneira incompetente, a ideologia e a visão de mundo da Idade Média ainda estavam em vigor, mas já não correspondiam de maneira muito próxima com realidade, e também estavam em competição com novas ideias e ideologias do Iluminismo, que emergiram a partir da retomada das viagens e do comércio junto da invenção da imprensa, o que facilitou a troca de ideias e de conhecimentos por longas distâncias e entre um maior número de pessoas.

E era esse Antigo Regime, uma ordem feudal degenerada e cada vez mais instável, que os delegados da ala direita da Assembleia Nacional queriam preservar ao máximo quando estourou a revolução, e era essa ordem que os delegados da esquerda queriam substituir por uma sociedade baseada em princípios iluministas.

As exigências da esquerda na Revolução Francesa

Então, que tipo de políticas as pessoas à direita e à esquerda da Assembléia queriam que fossem adotadas?

Os delegados do lado direito da Assembleia Nacional, que eram em sua maioria membros da nobreza e do alto clero, originalmente queriam apenas manter o sistema existente como era, para que pudessem manter todos os seus privilégios e vantagens hierárquicas tradicionais. O rei manteria a autoridade máxima, a nobreza e o clero teriam status e privilégios especiais e ainda deveriam receber seus dízimos e outras taxas e tributos, e os plebeus continuariam pagando todos os impostos, enquanto a nobreza e o clero continuariam isentos.

À medida que os acontecimentos progrediam, rapidamente tinham de aceitar concessões para não ficarem completamente fora da discussão – como aceitar a ideia de uma monarquia constitucional, com representantes eleitos –, mas eles estavam jogando na defesa, tentando aceitar apenas o mínimo absoluto de mudanças. Assim, por exemplo, sua proposta para um corpo eleito seria uma onde os plebeus, a nobreza e o clero recebiam ⅓ dos votos cada, embora os plebeus representassem 98,4% da população. E eles queriam que o rei tivesse poder de veto sobre a Assembleia para torná-la o mais impotente possível.

Em outras palavras, eles queriam manter as hierarquias políticas, econômicas e culturais da época tanto quanto fosse possível.

Enquanto isso, os delegados do lado esquerdo da Assembleia eram em sua maioria plebeus, mas da classe burguesa – ou seja, pessoas ricas ou de classe média das classes proprietárias e de profissionais urbanos – principalmente advogados e comerciantes ricos, junto com alguns membros do baixo clero e alguns poucos intelectuais da nobreza influenciados pelo iluminismo. O que eles queriam a princípio era mais igualdade política e cultural.

Em termos de instituições políticas, eles começaram exigindo coisas como igualdade perante a lei, na forma de uma monarquia constitucional com representantes eleitos livremente e representação igualitária para todos, independentemente do status de nobreza, clero ou plebe.

Além disso, eles queriam igualdade cultural em termos da eliminação completa das distinções legais entre nobreza, clero e plebeus; de todos os privilégios econômicos que vinham com o status clerical ou nobre e de todas as obrigações onerosas que vinham com o status como plebeu. Queriam também reduzir ou remover a influência da igreja católica sobre a sociedade e obter igualdade de expressão religiosa para religiões minoritárias como protestantes, e até mesmo judeus e maometanos.

Em outras palavras, eles queriam que as pessoas fossem tratadas como indivíduos perante a lei, e não como membros de ordens sociais coletivas.

E em termos econômicos, eles queriam que o Estado respeitasse a propriedade privada e outros direitos e liberdades dos indivíduos contra a ideia de que todo o país teoricamente pertencia ao rei, que poderia confiscar a propriedade de alguém à vontade. Eles também queriam que todos tivessem o mesmo direito de se envolver no comércio, ao invés do comércio de grande escala ser um privilégio concedido pelo rei aos seus comparsas, enquanto o comércio e o artesanato locais serem controlados por guildas.

Enquanto isso, fora da Assembleia Nacional, os trabalhadores urbanos, artesãos e lojistas, conhecidos como sans-culottes, que hoje significa pessoas sem cuecas, mas antes significava pessoas sem calças extravagantes, estavam pressionando o debate na Assembleia na direção de uma igualdade cada vez mais radical – o que mais tarde seria descrito como ir cada vez mais para a esquerda.

Embora não fossem delegados na Assembleia Nacional, eles desempenharam um papel de liderança na condução da revolução ao envolver-se com todo tipo de ações – revoltas, a tomada da bastilha, petições à Assembleia Nacional e, no geral, pressionar os delegados do lado esquerdo da Assembleia para que adotassem posições cada vez mais igualitárias.

Os sans-culottes queriam coisas como democracia direta sem representantes, como na Grécia Antiga, onde todos os cidadãos participavam do governo – em outras palavras, igualdade política total – e queriam também a abolição de todas as grandes propriedades e grandes negócios, e a redivisão das terras de forma que todos os cidadãos deveriam ter um lote equivalente. Além disso, eles queriam o controle de preços de alimentos básicos ao invés de ter sua sobrevivência sujeita aos caprichos do mercado. Em outras palavras, eles queriam extrema igualdade econômica e política.

Dentro de alguns meses, toda a ordem legal feudal do Antigo Regime foi abolida – nobreza, clero e plebeus eram indivíduos iguais perante a lei – e os privilégios nobres e clericais e seus dízimos, tributos, impostos e taxas tinham desaparecido.

Agora o debate dentro da Assembleia era sobre se o rei poderia ou não fazer valer um veto sobre as decisões da assembleia eleita, o que representava a posição da direita. Ou então, se a legislatura eleita deveria ter a palavra final, conforme exigido pelos delegados do lado esquerdo do salão.

E então, finalmente, encorajados pelos sans-culottes nas ruas, alguns dos delegados à esquerda da Assembleia adotaram a posição de acabar com a monarquia por completo e estabelecer uma República – significando um órgão público que pelo menos simbolicamente representa todo o público, versus uma monarquia, que é o domínio pessoal do monarca designado divinamente.

Eventualmente as coisas realmente saíram fora dos trilhos, cabeças começaram a rolar e houve uma nova forma de governo a cada punhado de anos – uma ditadura revolucionária, uma ditadura reacionária, o império de Napoleão, a restauração da monarquia, outra República, outra ditadura…

Na Revolução Francesa

Mercado versus Estado em 1789

De qualquer maneira, vamos testar nossas várias definições no início da Revolução Francesa.

Primeiro, a ideia de que a direita representaria as forças pró-mercado e que a esquerda representaria as forças pró-Estado. Já vimos no episódio 4 que todo esse conceito é incoerente e baseado em uma falsa premissa porque o mercado e o Estado não são inerentemente opostos um ao outro – porém – só porque algo não faz sentido, não significa que as pessoas não usariam a definição dessa forma. No entanto, se você olhar para a Assembleia Nacional, é quase que exatamente o oposto.

Era o lado esquerdo do salão que estava repleto de advogados e empresários burgueses e que incluía pessoas interessadas no direito de praticar o comércio livremente, sem interferência do Estado. Foi o lado esquerdo da assembleia que emitiu a revolucionária declaração dos direitos do homem, que garantia o direito à propriedade privada nos artigos 2 e 17.

E eram os delegados na direita que defendiam o sistema do Antigo Regime, onde o rei distribuía privilégios comerciais, tinha o direito de confiscar propriedades e onde as guildas controlavam os preços, regulavam a oferta, a concorrência e controlavam quem tinha quem não tinha permissão para praticar comércio e profissões.

Isso não faz nenhum sentido em um paradigma de direita-mercado versus esquerda-Estado, mas faz todo sentido se a divisão for entre hierarquia versus igualdade. Os delegados de direita queriam que o Estado reforçasse as hierarquias econômicas do Antigo Regime. Os delegados de esquerda queriam eliminar essas hierarquias em favor da igualdade de tratamento perante a lei.

Além disso, em termos de comércio e mercados, é importante entender que, nessa época, o capitalismo estava apenas engatinhando na França. A riqueza das nações de Adam Smith havia sido publicado apenas 15 anos antes. Ao contrário de hoje, quando as pessoas associam livre-comércio e mercados com desigualdade maciça, muitos teóricos, incluindo Adam Smith, viam os mercados como uma espécie de força equalizadora – eles acreditavam que sem o poder do Estado sustentando certos atores privilegiados, o mercado geraria mais igualdade – o que fazia sentido no contexto de um mundo onde o rei e seus comparsas mantinham suas riquezas por monopólio estatal e privilégios seletivos.

Indivíduo versus coletivo em 1789

E quanto à ideia de que a direita representaria o individualismo e a esquerda representaria o coletivismo, que é um paradigma popular entre os auto-denominados “capitalistas libertários”?

Bem, novamente, se olharmos para a Assembleia Nacional na Revolução Francesa, é exatamente o oposto.

A esquerda burguesa é a vertente que foi influenciada pelo Iluminismo, que se preocupava com os direitos e liberdades do indivíduo, e que os consagrou na Declaração dos Direitos do Homem.

Enquanto isso, eram os nobres aristocráticos e o alto clero no lado direito da Assembleia que queriam manter um sistema onde os direitos e privilégios fossem baseados em castas identitárias coletivas – nobreza, clero e plebeus.

A direita também queria que todos continuassem sujeitos à autoridade da igreja católica, e não há nada mais coletivista do que uma religião hierárquica, centralizada e organizada.

Portanto, no tempo da divisão original de esquerda e direita na qual se baseia nossa atual analogia de esquerda-direita – o indivíduo está firmemente na esquerda revolucionária e o coletivo está perfeitamente posicionado na direita tradicional.

Governo grande versus governo pequeno em 1789 

E quanto à ideia de que a esquerda representaria um governo grande e a direita representaria um governo pequeno?

A direita na Revolução Francesa estava defendendo um sistema monárquico absolutista que havia passado os últimos 300 anos tentando centralizar o poder nas mãos do Estado e do monarca. A direita queria usar o poder do Estado para proteger seu poder e privilégio. Era a esquerda que queria limitar os poderes do governo em relação ao cidadão, e é possível ver isso por toda a Declaração dos Direitos do Homem, elaborada pela esquerda. Veja os artigos 2, 4, 9 e 10, que limitam a autoridade do Estado e que consagram as liberdades dos indivíduos de se reunir, praticar uma religião ou não, e de possuir propriedade.

Mais uma vez, o governo grande estava à direita e o governo pequeno à esquerda.

Igualdade versus liberdade em 1789

E quanto à ideia de igualdade à esquerda versus liberdade à direita? Bem, sabemos que isso não pode estar correto porque o famoso slogan da esquerda na Revolução era Liberdade, Igualdade e Fraternidade. A direita não queria nem liberdade nem igualdade.

Havia outros slogans flutuando entre os revolucionários naquela época que são menos famosos hoje, mas que refletiam a mesma ideia – “Liberdade, Igualdade e Segurança”; “Liberdade, Igualdade e Propriedade”; “Liberdade, Igualdade e Força” – em todos esses slogans, liberdade e a igualdade sempre eram indispensáveis e inseparáveis.

Ao contrário da propaganda da Guerra Fria, igualdade e liberdade naturalmente andam juntas. Se todos forem politicamente iguais, ninguém estará em posição de dominar ninguém ou de restringir sua liberdade.

E enquanto os delegados de esquerda de 1789 não estavam pensando muito sobre a igualdade econômica, os pobres e precários sans-culottes do lado de fora da Assembleia certamente estavam – e o mesmo princípio se aplica tanto à desigualdade de riqueza quanto à desigualdade política – a desigualdade de riqueza restringe a liberdade política – porque poder econômico é poder político. Quanto mais riqueza você tem, mais poder você tem para forçar as pessoas a fazerem coisas.

A riqueza não lhe dá apenas o poder de comprar todos os bonecos do He-Man que você desejar – é o poder de contratar pessoas e mandar nelas o dia todo porque elas dependem da sua propriedade para viver. E é o poder de fazer as pessoas ter de pagar aluguel pela sua propriedade. A razão pela qual seu patrão lhe diz o que fazer o dia todo e não o contrário é porque você depende da propriedade dele para viver. E quanto mais desigualdade de riqueza entre você e a pessoa que precisa da sua propriedade, mais poder você tem para dizer a essa pessoa o que fazer – para fazê-la trabalhar em condições mais desagadáveis por um salário menor.

Na verdade, é a desigualdade e a liberdade que são opostas uma à outra! Quando há desigualdade política – ou seja, hierarquia – isso significa que algumas pessoas controlam o comportamento de outras pessoas e, assim, restringem a liberdade delas.

E, novamente, desigualdade econômica é desigualdade política. Lembre-se de que o que torna um governo estatal tirânico tão poderoso é o fato de que ele controla uma enorme quantidade de riqueza, que usa para pagar exércitos e policiais para impor seu domínio e restringir a liberdade de todos os outros.

A desigualdade econômica entre o Estado e seus cidadãos é o que permite ao Estado restringir a liberdade de seus cidadãos, da mesma forma que a desigualdade econômica entre os cidadãos é o que permite que os ricos e poderosos restrinjam a liberdade dos pobres e despossuídos. 

Na Terceira República

Ok, agora vamos avançar cerca de 100 anos para o período da 3ª República Francesa, que vai de 1870 até o início da Segunda Guerra Mundial em 1940. Na 3ª República foi permitido que todas as tendências políticas tivessem representação no governo pela primeira vez desde os primeiros anos da Revolução.

A essa altura, a França é novamente uma República Democrática com uma Assembleia Nacional, onde os representantes são eleitos pelo voto universal masculino e organizados em partidos políticos.

E no espírito da primeira Assembleia Nacional, os assentos dos deputados da 3ª República foram organizados por partido, da direita para a esquerda seguindo o espectro, especificamente de acordo com a sua ideologia política, com os membros do partido mais à direita sentados na extrema direita da câmara, e os representantes do partido mais à esquerda sentados na extrema esquerda do salão. Essa continua sendo a tradição na Assembleia Nacional da França até hoje.

Mas então quem se sentava aonde?

Inicialmente, na extrema direita, estavam os partidos aristocráticos que queriam que a França jogasse fora a Revolução Francesa e voltasse para uma monarquia conservadora tradicional. Mais tarde, depois que o apoio popular à monarquia desapareceu, sentavam-se na extrema direita partidos anti-semitas ultranacionalistas, que queriam apenas franceses étnicos e católicos tivessem direitos e o privilégio da cidadania.

Um pouco mais à esquerda deles, mas ainda do lado direito do salão estavam os partidos monarquistas constitucionais mais liberais, que queriam uma monarquia que governasse no interesse da burguesia, da classe empresarial, com o voto ficando restrito aos grandes proprietários. Por ali também se sentavam os bonapartistas, que queriam trazer de volta as ditaduras no estilo nacionalista e imperialista da família de Napoleão Bonaparte. Na centro-direita estavam os partidos burgueses republicanos que queriam que a igreja católica tivesse uma forte influência na sociedade. Depois, à esquerda, havia partidos burgueses republicanos democráticos que queriam que a igreja católica fosse completamente removida dos assuntos públicos. E então, uma vez que o socialismo organizado havia se tornado um movimento importante, o lado esquerdo da sala estava dominado por vários partidos socialistas, com os republicanos seculares deslocando-se para a centro-esquerda da câmara.

Assim, qual definição de esquerda e direita faz sentido considerando esses arranjos dos assentos?

Mercado versus Estado na Terceira República

No paradigma de mercado versus Estado, assume-se que o Estado esteja à esquerda e o mercado à direita – mas aqui temos os monarquistas defensores de um grande Estado e os bonapartistas pró-ditadura imperialista defensores de um mega-Estado na direita. E também na direita estavam os partidos monarquistas burgueses que queriam usar o poder de um governo grande para impor o poder do mercado.

Na extremidade esquerda estavam os socialistas que queriam que o Estado interferisse no mercado, mas era no centro, não na direita, que estavam os fãs do Estado mínimo de livre-mercado, na forma dos partidos republicanos de direita e esquerda.

Portanto, outra grande falha para o paradigma mercado versus estado.

Governo grande versus governo pequeno na Terceira República

Com o paradigma de governo grande versus pequeno a história é parecida. Partidos defensores de grandes governos na extrema direita, que apoiavam a monarquia e a ditadura e o uso de um governo grande para impor a hierarquia econômica, étnica e religiosa. Partidos favoráveis a um governo grande também na extrema esquerda, mas para assegurar a igualdade econômica e política.

Era a centro-direita e a centro-esquerda que queriam o menor governo, que principalmente fizesse cumprir os contratos e ficasse de fora do seu quarto e do seu local de culto, e que respeitasse as liberdades individuais.

Além disso,do lado de fora da Assembleia havia um forte movimento anarquista considerado como estando na extrema esquerda, que não queria nenhum governo – ou pelo menos nenhum governo estatal.

Indivíduo versus coletivo na Terceira República

Quando se trata da ideia de que o individualismo deveria estar na direita e o coletivismo na esquerda, mais uma vez, a imagem é semelhante – temos os partidos coletivistas hiper-nacionalistas e religiosos à direita, os partidos socialistas do coletivismo econômico à esquerda, e os partidos laicos individualistas no centro e centro-esquerda.

Igualdade versus liberdade na Terceira República

Nesse caso o paradigma de igualdade na esquerda versus liberdade na direita também representa um fracasso completo. A direita estava cheia de partidos que não queriam nem igualdade nem liberdade. A direita era onde se sentavam os partidários da monarquia e da ditadura bonapartista. Era no centro burguês que estavam os partidos liberais que acreditavam na liberdade política no sentido limitado do Estado ser restrito em seus poderes contra o indivíduo. E à esquerda estavam os socialistas, que na maior parte também acreditavam na igualdade e na liberdade, mas que pensavam que a liberdade só é possível quando há igualdade econômica.

Novamente, o único paradigma que faz sentido é hierarquia versus igualdade.

Socialistas da virada do Século XX

Vemos o mesmo tipo de padrão se mudarmos nosso foco para examinar os diferentes ramos do socialismo do final do século XIX e início do século XX.

Naquele momento, podemos dividir a maioria dos socialistas em três ramificações principais. Anarquistas à esquerda, Socialistas de Partido Revolucionário no meio e Socialistas Parlamentares à direita.

Não sou eu que estou inventando essas designações de esquerda e direita, se você ler livros e discursos de figuras importantes desses movimentos (e os socialistas sempre foram muito bons em insultar uns aos outros) poderá ler polêmicas indo e voltando, onde os anarquistas seriam ultraesquerdistas infantis e os socialistas do partido revolucionário secretamente seriam autocratas de direita disfarçados, e os socialistas parlamentares seriam  social-fascistas de direita renegados e vendidos – mas o que importa para nós é que os anarquistas são sempre descritos como estando à esquerda, e os socialistas parlamentares à direita, enquanto os socialistas do partido revolucionário estão no meio insultando as outras ramificações.

Normalmente era assim que os socialistas da época classificavam uns aos outros.

Todos esses socialistas tinham mais ou menos o mesmo objetivo – o socialismo – mas diferiam em como chegar lá.

As pessoas hoje costumam definir o socialismo como o controle estatal ou governamental da economia, mas isso é em grande parte uma relíquia da União Soviética e da propaganda da Guerra Fria. Tradicionalmente, o elemento definidor do socialismo é o controle pelos trabalhadores da economia e da sociedade – e embora o Estado possa ser uma forma dos trabalhadores exercerem esse controle, a maioria dos socialistas (certamente alguns dos socialistas historicamente mais importantes, como Marx, Engels e seus seguidores e, claro, todos os anarquistas) era contra o Estado como um instrumento apropriado para o governo socialista.

Em vez disso, eles esperavam que o socialismo fosse um mundo de democracia direta, com comunas e cooperativas autônomas se coordenando voluntariamente umas com as outras ao redor de todo o mundo, sem nenhum Estado controlando as coisas ou atrapalhando. É por isso que Marx costumava usar a frase “a livre associação dos produtores” em vez das palavras socialismo ou comunismo para descrever seu objetivo final.

Anarquistas

Então, à esquerda havia os anarquistas, pessoas como Mikhail Bakunin, Peter Kropotkin e Emma Goldman – que pensavam que o caminho para se chegar a uma sociedade de comunas e cooperativas autônomas controladas por trabalhadores seria por meio de uma revolução que derrubasse o Estado e o capitalismo ao mesmo tempo.

Para os anarquistas, o Estado era simplesmente um instrumento de opressão usado pela classe dominante para subjugar as classes oprimidas. Era apenas uma máquina que as classes dos proprietários de negócios e de imóveis usavam para fazer regras que os mantivessem ricos e que mantivessem pobres os trabalhadores, arrendatários e inquilinos – assim como os Estados medievais mantinham os servos sob o controle da nobreza, e como o antigo Estado romano mantinha os plebeus sob o domínio das famílias senatoriais.

Como o movimento mais à esquerda dentro da esquerda, os anarquistas desconfiavam de todas as hierarquias, políticas, econômicas, culturais ou internacionais e não cogitavam a participação em partidos políticos eleitorais ou em qualquer tipo de governo estatal.

Nas famosas palavras de Bakunin, se um socialista tentasse tomar o poder por meio do Estado, acabaria “surrando o povo com o bastão do povo” – o que significa que eles se tornariam uma nova classe dominante como senhores acima do povo, mas em nome do povo.

Socialistas de Partido Revolucionário

No centro do movimento socialista estavam os socialistas de partido revolucionário, cujas principais figuras incluíram Karl Marx, Friedrich Engels, Rosa Luxemburgo e Vladimir Lênin.

Estes socialistas tinham mais ou menos o mesmo objetivo final dos anarquistas, mas tinham um desacordo fundamental sobre como chegar lá. Os socialistas de partido revolucionário concordavam com os anarquistas que o Estado era um instrumento de opressão – a formulação que dei anteriormente sobre o Estado ser um instrumento de dominação de classe na verdade vem de Engels e Marx – mas os socialistas de partido revolucionário também acreditavam que você não seria possível concluir com sucesso uma revolução sem utilizar o poder do Estado para impedir as classes altas de retomar o poder. Contudo, depois que essa tarefa estivesse concluída, o Estado se tornaria obsoleto, agora que não haveria mais classes para serem dominadas.

E enquanto os anarquistas à sua esquerda rejeitavam qualquer participação na política estatal, os socialistas do partido revolucionário acreditavam que era necessário participar da política eleitoral sempre que possível, a fim de melhorar as condições das classes trabalhadoras, bem como aumentar a popularidade do socialismo e fortalecer o movimento no geral.

A hostilidade em relação ao Estado diminuiu um pouco no início do século XX, à medida que esses partidos socialistas começaram a obter algum sucesso eleitoral e também algum sucesso em pressionar governos não-socialistas a implementar políticas públicas socialistas – por exemplo, o chanceler conservador Otto von Bismark na Alemanha implementou o primeiro sistema de saúde pública do mundo sistema em 1893 como parte de uma tentativa fracassada de retirar os ventos que vinham impulsionando as velas do crescente movimento socialista de sua época.

Com esses desenvolvimentos, alguns proeminentes socialistas do partido revolucionário, como Karl Kautsky, decidiram que, embora a revolução ainda fosse necessária, talvez algum tipo de Estado permanente fosse um instrumento apropriado para ajudar a coordenar todas as cooperativas e comunas de trabalhadores em uma sociedade socialista.

Socialistas parlamentares

Esses desenvolvimentos também levaram alguns socialistas revolucionários a desistir completamente da revolução. O movimento socialista parlamentar, originalmente fundado por Ferdinand Lassalle na época de Marx, decolou no início de 1900 quando Eduard Bernstein, um seguidor de Marx, rompeu com o socialismo de partido revolucionário e teorizou que seria possível simplesmente continuar aprovando reformas cada vez mais socialistas em um parlamento eleito em um país capitalista sem a necessidade de uma revolução – coisas como a jornada de 8 horas de trabalho, salário mínimo e mais direitos para os trabalhadores – e que eventualmente se chegaria no socialismo dessa maneira – ou não – mas que o que importa de verdade é que as coisas continuem melhorando para os trabalhadores. Este movimento deu origem a muitos partidos socialistas de sucesso em todo o mundo que ainda existem hoje – e que chamamos de partidos social-democratas, embora agora a maioria deles tenha renunciado ao socialismo, até mesmo nominalmente.

Direita e esquerda entre os socialistas da virada do século XX

Portanto, novamente, se olharmos para os socialistas do final do século XIX e início do século XX e tentarmos aplicar as definições populares de esquerda e direita – mercado versus Estado, indivíduo versus coletivo, governo grande versus governo pequeno e igualdade versus liberdade – para identificar à esquerda e à direita os socialistas – todas as definições falham miseravelmente.

Mercado versus Estado e os socialistas da virada do século XX

Vamos começar com mercado versus Estado? (sons de máquinas enguiçando)

Já mencionei anteriormente que o mercado era visto como uma força potencialmente equalizadora na época da Revolução Francesa. Continuava sendo assim no século XIX, quando o movimento socialista estava decolando, e havia muitos socialistas que pensavam que o mercado eliminaria os privilégios e as vantagens injustas que os ricos obtinham do Estado para mantê-los ricos.

Pessoas como Thomas Hodskin, Lysander Spooner ou Pierre Joseph Proudhon adoravam os mercados. A maioria desses socialistas pró-mercado eram anarquistas de algum tipo, na ala esquerda do socialismo. Conquanto o trabalho humano não pudesse ser alugado no mercado, e não houvesse indivíduos possuindo terras ou capital do qual outras pessoas dependessem para viver, eles acreditavam que permitir que as pessoas negociassem suas posses livremente era a melhor maneira de alocar recursos e que isso geraria igualdade e prosperidade.

Os socialistas de partido revolucionário, na tradição de Marx, acreditavam que os mercados deveriam ser substituídos por alguma forma de alocação voluntária e democrática dos recursos, que ninguém parecia definir com muita clareza, mas que aconteceria sem qualquer Estado ou com um Estado mínimo.

Eram os socialistas parlamentares mais à direita que queriam que o Estado interferisse mais sobre o mercado e que nacionalizasse cada vez mais indústrias ao longo do tempo, embora tendessem a apoiar pequenos negócios e mercados para os bens de consumo.

Portanto, temos anti-estatistas pró-mercados à esquerda; grandes estatistas pró-mercados pequenos à direita, e “nem-mercados nem-Estado” no meio; e daí havia alguns anarco-comunistas anti-mercado e anti-Estado também à esquerda.

Para esse paradigma, uma bagunça incompreensível!

Governo grande versus pequeno e os socialistas da virada do século XX

Quando se trata da ideia de esquerda e direita serem sobre governo grande à esquerda versus governo pequeno à direita, o espectro socialista era exatamente o oposto.

À esquerda, havia os anarquistas que não queriam nenhum governo estatal. No meio, você tinha os socialistas de partido revolucionário, que queriam um governo grande por uns cinco minutos ou talvez por um ou dois anos, que então deveria desaparecer ou chegando em nenhum governo estatal, ou então talvez em um Estado mínimo remanescente para ajudar a coordenação entre as comunas e cooperativas – e à direita havia os socialistas parlamentares, que estavam felizes em continuar aumentando o tamanho e o poder do Estado sobre a economia, e talvez um dia ele pudesse se tornar obsoleto… ou talvez não. Que beleza para o paradigma, hein?

Indivíduo versus coletivo e os socialistas da virada do século XX

E é claro que a ideia de individualismo à direita versus coletivismo à esquerda também não funciona.

Todos os socialistas são coletivistas econômicos, mas era na esquerda anarquista que você tinha maior preocupação com os direitos e liberdades individuais – o anarquismo em muito se trata da libertação do indivíduo de todas as hierarquias, com anarquistas individualistas famosos como Pierre-Joseph Proudhon e Emma Goldman.

No centro, socialistas de partido revolucionário como Lenin zombavam da preocupação dos anarquistas com o que ele ridicularizava como sendo direitos e liberdades pequeno-burgueses, que via como desculpas para a dominação capitalista. Ainda hoje, os leninistas chamam o anarquista Noam Chomsky de liberal por defender direitos individuais clássicos como a liberdade de expressão.

Enquanto isso, à direita, os socialistas parlamentares em países capitalistas democráticos também tendiam a respeitar as proteções constitucionais populares aos direitos individuais e queriam expandi-los.

Portanto, havia coletivismo econômico por toda a direita e esquerda socialista, mas esse coletivismo coexistia com um alto grau de individualismo mais à esquerda e um pouco menos à direita, e o menor individualismo estava no meio.

Igualdade versus liberdade e os socialistas da virada do século XX

O mesmo vale para igualdade versus liberdade. Os anarquistas, que eram os socialistas mais igualitários, também eram os socialistas mais libertários – socialismo libertário é outro termo para o anarquismo e, como sigo repetindo, liberdade e igualdade andam de mãos dadas e, na verdade, requerem uma à outra.

Os socialistas de partido revolucionário no meio também eram bastante igualitários, mas tinham menos preciosismo quanto à liberdade e outros direitos individuais como acabamos de ver, e quando Lenin e os bolcheviques tomaram o poder na Rússia, rapidamente jogaram a liberdade pela janela no segundo em que as coisas ficaram difíceis, e veremos as circunstâncias em torno disso em outro episódio.

Enquanto isso, os socialistas parlamentares à direita eram os mais tolerantes com a desigualdade econômica, e também os mais confortáveis com a hierarquia política do Estado (até a Revolução Bolchevique, mas isso é outra história para outro episódio); ao mesmo tempo, os socialistas parlamentares também tendiam a colocar um alto valor às liberdades constitucionais das democracias representativas sob as quais serviam.

De qualquer maneira, antes da Revolução Bolchevique, tínhamos mais liberdade e mais igualdade à esquerda; depois, no meio tínhamos menos liberdade, e a segunda maior igualdade; e à direita tínhamos a menor igualdade e a segunda maior liberdade.

Hierarquia versus igualdade e os socialistas da virada do século XX

Mais uma vez, o único paradigma que faz sentido com a maneira como os socialistas do século XIX e início do século XX classificavam a si mesmos no espectro esquerda-direita é  hierarquia e igualdade. Os anarquistas estavam à esquerda porque queriam o caminho mais direto para a igualdade política, econômica, cultural e internacional. O pessoal dos partidos revolucionários estavam à direita dos anarquistas porque acreditavam que era necessário participar do governo hierárquico estatal e tomar o Estado, mesmo que apenas temporariamente a fim de atingir o mesmo objetivo final. E os socialistas parlamentares estavam à direita deles, porque estavam dispostos a tolerar a desigualdade econômica de longo prazo e a se envolver com uma participação de longo prazo (e talvez eterna) no governo hierárquico do Estado. Além disso, quando estourou a Primeira Guerra Mundial, eles ficaram do lado de suas respectivas nações na guerra, abandonando o princípio da igualdade internacional, para o horror de todos os outros socialistas.

Mas então do que se trata?

Então, para resumir tudo isso – e você pode fazer este mesmo exercício com qualquer período histórico anterior à Guerra Fria, quando tudo se torna uma bagunça, por razões que veremos num episódio futuro – esquerda e direita claramente não se tratam do tamanho do governo, nem de se você quer maior ou menor controle do Estado sobre o mercado; nem de mais ou menos individualismo ou coletivismo. Esquerda e direita tratam-se do que você quer fazer com o poder do governo? O que você deseja realizar ao regular o mercado ou ao liberar o mercado? Com que finalidade você está invocando o bem coletivo ou os direitos do indivíduo?

Tanto faz se você prefere o mercado, o Estado regulador, o coletivismo, o individualismo, o “cosmojizmatismo” – se seu objetivo é preservar ou promover os interesses das pessoas no topo da pirâmide social, você está à direita. Se quiser promover os interesses das pessoas de baixo, você está à esquerda.

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