As origens da dominação masculina e da hierarquia social

Por que o mundo hoje é quase totalmente hierárquico? O que a Antropologia Política tem a nos dizer sobre por que (e como) as sociedades passam do igualitarismo para a hierarquia, seja na organização social, seja nas relações de gênero? O que David Graeber e Jordan Peterson entendem errado sobre tudo isso? Se as condições materiais determinam nossas estruturas sociais e hierarquias políticas, como podemos melhorar nossas vidas sem ser apenas esperando que as realidades materiais mudem?

transcrição do podcast What is Politics (“O que é política”)

Um faraó sendo servido por mulheres. Montagem com imagem no estilo de ilustrações do Egito Antigo gerada a partir de palavras chave pela IA Stable Diffusion.


Este artigo é a transcrição do episódio 7 do podcast What is Politics, As origens da dominação masculina e da hierarquia social: o que David Graeber e Jordan Peterson entendem errado. É o segundo de uma série sobre Antropologia Política (que se encaixa em uma série maior de Introdução à Política). Essa série discute as origens das hierarquias nas sociedades humanas diante do conhecimento construído em diferentes áreas como Antropologia e Arqueologia. Mais à frente a série passou a focar em comentários críticos sobre o livro “O despertar de tudo: Uma nova história da humanidade“, de David Graeber e David Wengrow. Este é o primeiro texto da série em que o autor começa a trabalhar com argumentos específicos de Graeber e Wengrow.


Olá, amiguinhos, e sejam bem vindos de volta ao “O Que É Política?”

Nos últimos episódios, estivemos examinando esquerda e direita na política. A Política refere-se à questão de quem pode tomar as decisões; e nossa sociedade é composta de várias hierarquias, onde algumas pessoas têm mais poder de decisão do que outras, com base em instituições políticas e em diferenças de riqueza econômica e status cultural. À direita temos aquelas pessoas que querem dar mais poder às pessoas no topo dessas hierarquias, e à esquerda temos aquelas que querem dar mais poder às pessoas na base dessas hierarquias, ou que querem livrar-se dessas hierarquias por completo. Em outras palavras, a direita representa a hierarquia e a esquerda representa a igualdade.

Se você for novo neste podcast e achar que esquerda e direita significam alguma outra coisa que não hierarquia versus igualdade, vá para o episódio cinco e depois para o episódio quatro e depois volte aqui.

De qualquer forma, no último episódio, começamos a estudar um pouco de Antropologia Política para entender algumas das engrenagens e mecanismos de funcionamento da esquerda, direita e da Política Humana. Vimos também que, muito embora os termos “esquerda” e “direita” só apareçam no nosso vocabulário político com a Revolução Francesa de 1789, a tensão entre hierarquia e igualdade tem estado no centro da política humana desde antes mesmo de sermos seres humanos anatomicamente modernos.

Vimos que até em torno de 12.000 atrás, geralmente era a igualdade que prevalecia. Antes dessa época, temos todos os motivos para acreditar que a maioria dos seres humanos estava organizada em bandos nômades de caçadores-coletores com igualdade política, econômica e de gênero. Vimos que depois de 12.000 anos atrás, sociedades hierárquicas começaram a aparecer em todos os lugares e a se espalhar como um incêndio por todo o mundo – até chegarmos ao momento atual, onde quase todas as pessoas fazem parte de uma sociedade hierárquica, e onde existem apenas cerca de 100-200 mil pessoas que ainda permanecem como forrageadores igualitários, com “forrageamento” sendo outra palavra para caça e coleta.

Depois, observamos dois tipos diferentes de sociedades de caçadores-coletores. Primeiro, examinamos várias sociedades ao redor do mundo que praticam uma forma nômade de caça e coleta chamada de forrageamento de retorno imediato, e vimos que todas as culturas conhecidas que praticam esse tipo de forrageamento são sempre extremamente igualitárias. E então, examinamos as culturas da Costa Noroeste do Pacífico, que praticavam um tipo muito diferente de economia de caça e coleta sedentária, baseada em territórios fixos de pesca de salmão. Vimos que esses caçadores-coletores desenvolveram elaboradas hierarquias políticas, econômicas e espirituais com chefes, nobres e escravos.

Finalmente, vimos que o que torna os caçadores-coletores de retorno imediato tão igualitários e o que torna as sociedades da Costa Noroeste do Pacífico tão hierárquicas tem tudo a ver com o poder de barganha relativo dos vários atores dessas sociedades. Vimos também que o poder de barganha em si é o resultado das realidades práticas criadas pelos diferentes tipos de economias que cada tipo de sociedade pratica. As realidades práticas da caça e coleta nômade de retorno imediato são de tal maneira que simplesmente não há como alguém dominar outra pessoa ou acumular mais riqueza do que qualquer outra – o que não é verdade para as economias sedentárias tradicionais da Costa Noroeste do Pacífico.

***

No episódio de hoje vamos aplicar o que já aprendemos sobre hierarquia, igualdade e poder de barganha para compreender porque sobraram tão poucas sociedades igualitárias no mundo atual e porque o domínio masculino e o patriarcado são tão prevalentes em todo o mundo.

Graeber

Mas antes de começarmos, algumas pessoas escreveram para mim depois do último episódio para dizer que eu estava fornecendo informações desatualizadas e que os antropólogos David Graeber e David Wengrow teriam recentemente refutado toda a ideia de que a maioria dos seres humanos eram caçadores-coletores igualitários até 12.000 atrás. Na verdade, estou bem ciente dos artigos de Graeber e Wengrow sobre esse assunto e, ainda que eu seja um grande admirador de David Graeber, posso dizer que, embora ache esses artigos muito estimulantes, suas principais alegações não estão apenas erradas, elas estão fazendo apodrecer os nossos cérebros.

Graeber e Wengrow fazem duas alegações principais nesses artigos. Primeiro, que as pessoas alternavam entre hierarquia e igualdade na era do Paleolítico e, segundo, que a razão pela qual elas iam e vinham entre as duas é porque elas estavam meio que tentando coisas novas e experimentando novas possibilidades sociais – tipo, “uaaau, iahuuu!”.

A primeira argumentação é uma questão de interpretação do registro arqueológico e geológico, e os detalhes não são realmente relevantes para este episódio. Mesmo que a afirmação de Graeber estivesse correta, isso não mudaria nada quanto ao que venho falando sobre como hierarquia e igualdade funcionam – então pretendo abordar esses detalhes em um episódio bônus de perguntas e respostas. Basicamente, o clima estava flutuando de maneira descontrolada demais durante o Paleolítico para que a hierarquia fosse possível ou funcional fora de microclimas excepcionais, embora isso provavelmente tenha acontecido com mais frequência conforme se aproximava o final do Paleolítico. Deixarei nas notas um artigo de Doron Shulnitzer sobre isso. Há também um corpo de evidências realmente interessante e crescente à partir da fisiologia humana que sugere fortemente que os seres humanos evoluíram em um contexto igualitário. Guardarei isso para um episódio específico, mas vou deixar um artigo de Camilla Power nas notas que resume alguns desses argumentos.

De qualquer forma, a parte realmente medonha dos artigos de Graeber e Wengrow é sua segunda argumentação, onde afirmam que a razão pela qual as pessoas passam da hierarquia para a igualdade seria porque elas estariam simplesmente “experimentando”. Este é o cerne de sua tese e de seu projeto político – e está deixando todos que os lêem mais estúpidos e tirando nossa capacidade de entender a Política Humana.

O motivo pelo qual comecei a fazer estes episódios sobre antropologia política é para combater absurdos como esse. É realmente decepcionante que Graeber tenha usado seu grande talento para propagar uma coisa dessas e, mais importante, é um testamento do quanto a academia afundou o fato de que Graeber não soubesse o bastante para não ter de inventar bobagens como essa. Na verdade, eu estava escrevendo um e-mail amigável para Graeber sobre esses artigos quando ele morreu repentinamente, então não sei qual teria sido a reação dele às minhas críticas, que agora incluirei como parte deste episódio.

Materialismo

Ao contrário de Graeber e tantos antropólogos, historiadores e teóricos políticos, o que estamos fazendo nesta série é olhar para hierarquia, igualdade e outras questões sobre cultura, história e política, através de lentes materialistas. Em outras palavras, estamos trabalhando com a suposição de que as pessoas não se organizam em bandos de caçadores-coletores, reinos, ou repúblicas simplesmente porque possuem valores específicos, ou porque alguma pessoa particularmente inteligente decidiu se tornar um rei ou inventar a democracia ou porque um punhado de pessoas tomou um punhado de ayahuasca e achou que seria uma viagem doida realizar experimentos sociais.

Estamos trabalhando com a premissa de que as pessoas se organizam nessas diferentes configurações porque existem condições materiais e práticas que nos pressionam a fazer certas escolhas e a aceitar certos acordos. E também estamos assumindo que os valores que essas pessoas têm – que nós temos – são moldados pelas mesmas circunstâncias materiais que moldam nossas estruturas sociais e nossas instituições políticas.

Não estamos assumindo essas premissas com base simplesmente em algum pressentimento ou ideologia, estamos fazendo essas suposições porque observamos isso ocorrendo repetidamente no registro antropológico de tantas maneiras, como veremos à medida que avançarmos.

E a razão pela qual estou me concentrando no registro antropológico e em sociedades de pequena escala, como bandos de caçadores-coletores, em vez do registro histórico e das grandes civilizações, é porque as dinâmicas políticas e materiais são muito mais fáceis de se compreender em grupos menores, com uma variedade limitada de atividades econômicas, do que em grandes sociedades com zilhões de pessoas fazendo zilhões de diferentes tipos de atividades.

É como quando você quer aprender como funcionam os átomos, moléculas, compostos básicos e Química básica antes de entender o que está acontecendo em um depósito de lixo tóxico radioativo cheio de diferentes produtos químicos reagindo entre si de várias maneiras ao mesmo tempo.

Nos artigos de Graeber & Wengrow, eles observam como algumas sociedades de tempos recentes – como os Inuítes, os povos da Costa Noroeste do Pacífico ou os Nambiquaras – alternam entre mais hierarquia e mais igualdade sazonalmente. Além disso, eles comparam essas culturas com alguns achados arqueológicos que sugerem que existiram algumas sociedades com hierarquia social no Paleolítico. Eles concluem que os caçadores-coletores ancestrais ou recentes e outras sociedades estão alternando entre hierarquia e igualdade porque estariam “conscientemente realizando experimentos com diferentes possibilidades sociais”.

Não. As pessoas mudam de mais hierarquia para mais igualdade sazonalmente, porque elas estão alternando entre diferentes atividades econômicas sazonalmente – e essas diferentes atividades criam certas realidades práticas que mudam o nível de poder de barganha relativo entre diferentes pessoas e grupos de uma estação para outra.

Os chefes Nambiquara conseguem mandar nas pessoas na temporada de horticultura e jardinagem, quando todos estão presos no mesmo lugar, mas perdem o aspecto coercitivo de sua autoridade na temporada de caça nômade porque, nessa época, as pessoas podem simplesmente se mudar para um bando diferente para evitar um chefe irritante.

E os homens Inuíte podem dominar as mulheres Inuíte na temporada de verão porque nessa estação os animais árticos que eles caçam se dispersam de tal maneira que as pessoas passam a viver em grupos bem pequenos de uma ou duas famílias nucleares, onde um homem pode simplesmente dominar à força uma mulher sem interferência. Mas os homens Inuíte perdem a maior parte de sua autoridade patriarcal no inverno, que é a época de caçada massiva e concentrada de focas, porque nessa época eles vivem em grandes habitações multifamiliares onde as mulheres podem se afastar de seus maridos e onde elas têm parentes do sexo masculino por perto que podem manter seus maridos sob controle.

Observe que estou usando exatamente os mesmos exemplos que Graeber e Wengrow citam em seus artigos, mas para argumentar o contrário da tese deles – e peguei esse material exatamente das mesmas fontes que eles colocaram na bibliografia de seus artigos.

Simplesmente não acontece das pessoas fumarem um bong e alguém sair dizendo “cara, tenho um experimento legal – eu serei o faraó, e terei todo o poder e riqueza, e vocês serão os escravos e poderão gastar toda a sua vida sendo açoitados e trabalhando até a morte construindo pirâmides que me glorifiquem por toda a eternidade!” com outras pessoas que irão se tornar escravos respondendo “caaaaara, sim!!!”

E ninguém jamais comeu um punhado de cogumelos mágicos e saiu dizendo “uau, tive uma ideia sensacional – que tal se todos os manos ficassem com toda a autoridade e poder, e aí todas as minas tivessem que ficar em casa e fazer bifes para nós e limpar nossos cuecas! E aí, se elas não gostarem, a gente pode bater nelas porque elas serão nossa propriedade!” com as mulheres respondendo “Incrível!!!! Uau!!! Vamos experimentar isso e ver como as coisas rolam!” – e não foi por esse experimento dar muito certo que as pessoas continuaram presas a ele pelos últimos 12.000 anos!

Todo mundo quer ter liberdade e conforto. E muitas vezes há pessoas tentando obter liberdade e conforto às custas da liberdade e do conforto de outras pessoas. Porém, existem condições práticas que permitem que algumas pessoas consigam o que querem e outras não, e que levam a certos acordos sendo alcançados em oposição a outros acordos.

Há momentos e lugares em que aquelas pessoas que querem dominar vencem, e momentos e lugares em que elas não conseguem fazer isso. A experimentação ocorre sim, mas ocorre no que tange aos detalhes desses acordos. Ela acontece quando o equilíbrio de poder começa a mudar e há períodos de instabilidade e oportunidade para as pessoas obterem um acordo mais favorável – quando as pessoas com poder realizam experimentos com as maneiras de manter esse poder e as pessoas sem poder realizam experimentos com modos de conquistar mais poder.

E quando o equilíbrio de forças muda, as normas, valores e a cultura também mudam para que as pessoas se adaptem à ordem existente e aliviem as tensões inerentes tanto à hierarquia quanto à igualdade.

Você não aceita ser escravo porque está experimentando, aceita porque alguém com muito mais poder que você te dá a opção de ser escravo ou morrer. Você aceita a dominação masculina por estar em uma situação em que ou se submete à autoridade masculina ou é espancada ou morta. Você aceita trabalhar em um emprego ruim com condições miseráveis porque suas alternativas são ser despejado, ou então aceitar um emprego pior, com condições ainda piores. E talvez sua cultura esteja te alimentando com justificativas de por que você merece ser um escravo, uma mulher submissa ou um funcionário pobre, e talvez você esteja inventando suas próprias racionalizações para que possa permanecer são, mas essas justificativas e essas racionalizações emergem como uma adaptação à realidade material mais do que criam essa realidade material.

Como pessoas que querem realizar transformações em nossa ordem política atual, o que queremos examinar são as condições que dão ao faraó o poder de dominar o escravo, ou que dão aos homens o poder de dominar as mulheres, ou que dão ao patrão o poder de dominar seus trabalhadores. E queremos também examinar as condições que permitem que a transformação aconteça. Então é isso que estamos fazendo aqui.

Materialismo e Marx

Agora, a ideia de que as realidades materiais e práticas moldam a cultura, a estrutura social e a ideologia pode soar como um aprendizado escolar pretensioso e sofisticado, mas é uma coisa muito básica, e todos sabemos disso pela nossa experiência pessoal – no último episódio, dei o exemplo de trabalhadores de escritório versus artistas, onde empregos de escritório geram uma cultura onde as pessoas reprimem seus sentimentos, enquanto as artes encorajam as pessoas a expressarem seus sentimentos abertamente.

Essa abordagem para se entender os fenômenos sociais tem diversos nomes – eu a chamo apenas de Materialismo ou, no nosso caso, onde estamos examinando a Política, de Materialismo Político – mas frequentemente você verá termos como Materialismo Histórico, Materialismo Cultural, Ecologia Cultural, Ecologia Comportamental ou Marxismo – e não Marxismo no sentido de socialismo ou comunismo, mas Marxismo no sentido da maneira de Marx de analisar os fenômenos sociais através das lentes das condições materiais e dos diferentes interesses materiais de diferentes classes de pessoas.

Marx não inventou a abordagem materialista, toda criança de quatro anos a utiliza, e você pode vê-la sendo empregada em textos antigos ao redor de todo o mundo, até em alguns contemporâneos de Marx – mas Marx a articulou e aplicou de uma maneira unicamente sistematizada e contundente para tratar da Política e da História. Além disso, a análise materialista foi extremamente influente não apenas na política socialista, mas também na Antropologia e na Sociologia até que a involução pós-modernista dos anos 80 em diante deixasse as pessoas na área de humanidades com medo de se perguntar por que algo acontece e transformasse o meio acadêmico em um culto ao abuso e ao desamparo aprendidos.

Agora, embora o materialismo esteja associado a Karl Marx, e muitos estudiosos materialistas fossem explicitamente socialistas marxistas, isso não significa que a análise materialista seja inerentemente de esquerda ou socialista.

Você pode usar uma análise materialista para propósitos de direita ou pode usá-la para propósitos de esquerda. Por exemplo, você pode ler um livro chamado Culture and conflict in the Middle East (“Cultura e conflito no Oriente Médio”), do antropólogo Carl Philip Salzman, que foi meu professor na Universidade McGill e que é especialista em sociedades pastoralistas nômades, ou seja, sociedades que vivem principalmente da criação de animais. Seu livro usa explicações materialistas clássicas sobre várias culturas pastoris nômades, nas quais a civilização árabe estava originalmente baseada. Disso ele extrai uma argumentação sobre os conflitos no Oriente Médio e sobre o conflito árabe-israelense, em particular. E enquanto a maioria dos estudiosos materialistas de esquerda concordaria com as explicações materialistas sobre o pastoralismo, a tese que ele deriva a partir dessa análise materialista faria explodir a cabeça de qualquer pessoa de esquerda. Ele basicamente coloca a culpa por todo o conflito no atraso da cultura árabe e em suas influências pastoralistas. 

O projeto de Graeber

Contudo, enquanto alguém como Salzman usa o materialismo para promover ideias de direita, o que David Graeber estava tentando fazer com sua obra recente era tentar se livrar do materialismo, em uma tentativa equivocada de promover um projeto político específico – um projeto com o qual concordo, embora eu ache que ele estava tentando fazer isso por um caminho completamente errado.

Muitas pessoas argumentam que sociedades igualitárias só seriam possíveis em pequenos grupos, como um bando de caçadores-coletores, onde todos podem policiar todos os outros, ou onde você pode chegar a um consenso sem destruir a eficiência. Esses são argumentos materialistas. E as mesmas pessoas que defendem esses argumentos continuarão insistindo que não é possível ter igualdade em sociedades maiores sem ter algum tipo de hierarquia política tirânica para que a igualdade seja imposta. E isso, por sua vez, significa que a verdadeira igualdade seria impossível, porque se você tem uma autoridade que impõe a igualdade a partir de cima – isso seria uma hierarquia política. Portanto, de acordo com esses argumentos, o slogan revolucionário francês de igualdade, fraternidade e liberdade seria um oxímoro: você poderia ter igualdade ou liberdade, mas não ambas; ou poderia ter igualdade política ou igualdade econômica, mas não ambas. Esses são argumentos inerentemente de direita. A direita está, por definição, sempre argumentando que você não pode ter mais igualdade, e a esquerda está sempre argumentando que sim, você pode.

No entanto, Graeber era um socialista anarquista que queria um mundo muito mais igualitário e que foi ativo de várias maneiras na tentativa de fazer isso acontecer – ele foi importante no movimento Occupy e foi um militante vitalício em nome de todo tipo de causas.

Portanto, para argumentar contra a ideia de que os seres humanos estariam condenados para sempre a viver em hierarquia devido às realidades materiais da civilização, Graeber quer jogar fora toda a ideia de que as realidades materiais moldam nossas vidas. Em vez disso, ele quer promover a ideia de que podemos simplesmente “experimentar” um caminho para fora da sociedade hierárquica se quisermos, da mesma forma que supostamente teríamos experimentado viver sob hierarquia. (Sons de um bong sendo puxado ao fundo).

O que vou dizer hoje é que, ainda que eu concorde com Graeber de que não estamos necessariamente presos ao estado de coisas existente, se nós quisermos transformar alguma coisa de verdade, não podemos fazer isso apenas deixando cair uma porção de ácido no abastecimento de água e começando a “experimentar” ter a sobremesa antes do jantar ou fazer os zeladores se tornarem senadores. Se queremos transformar as coisas, precisamos entender as realidades em que vivemos, a fim de descobrir como podemos trabalhar dentro das restrições existentes para alterar o equilíbrio de poder dos vários atores, classes e grupos de interesse em nossa sociedade.

O fim do igualitarismo

Então, a primeira questão que quero abordar é por que o mundo hoje é quase totalmente hierárquico? Quer você acredite na teoria de Graeber sobre as pessoas alternando entre hierarquia e igualdade no Paleolítico, ou se acreditar na teoria padrão de que as pessoas eram em sua maioria igualitárias, todos concordam que houve uma transformação maciça na hierarquia a partir de 12.000 anos atrás.

No final de um dos textos de Graeber ele se faz a mesma pergunta: “se há um enigma aqui é por que, depois de milênios construindo e desmontando formas de hierarquia”, por que “o Homo Sapiens – supostamente o mais sábio dos macacos – permitiu inicialmente que sistemas de desigualdade permanentes e intratáveis fincassem raízes?”

Bem, notícia fresquinha: nós já temos a resposta para essa pergunta desde pelo menos a década de 1960, se não desde a década de 1760, quando vários pensadores iluministas como Jean-Jacques Rousseau teorizaram que a hierarquia teve início quando as pessoas passaram da caça e coleta para a agricultura, ainda que não soubessem os motivos corretos para isso. Depois, no século XIX, Louis Henry Morgan, Karl Marx e Friedrich Engels também chegaram novamente à mesma conclusão, mas também pelas razões erradas, embora pelo menos estivessem examinando as condições materiais. Hoje temos informações antropológicas e arqueológicas suficientes para saber que a hierarquia de fato começa a se espalhar pelo mundo após o surgimento da agricultura, que é praticada de forma contínua pela primeira vez há cerca de 12.000 anos.

Também sabemos que o motivo por que a agricultura começa nessa época está relacionado às mudanças no clima global que tornaram possível a agricultura contínua pela primeira vez há cerca de 12.000 anos. 12.000 anos atrás marca o início da era do Holoceno, que é a nossa atual era geológica. Antes disso, na era geológica do Pleistoceno – que é também a era tecnológica do Paleolítico para os seres humanos – sabemos hoje que a dependência da agricultura não era uma estratégia econômica viável. O clima flutuava com muita frequência e não havia dióxido de carbono suficiente na atmosfera ou no solo para possibilitar uma agricultura produtiva e da qual se pudesse depender.

As consequências dessa mudança geológica é que, depois de 12.000 anos atrás, se uma população de caçadores-coletores passasse por uma grande crise, seja por causa do esgotamento de recursos, superpopulação, mudança climática ou competição com outros grupos – em vez de entrar em colapso e morrer de fome, o que poderia ter ocorrido na era do Pleistoceno, agora elas tinham a opção de usar a agricultura para complementar suas dietas ou mesmo como base para toda a sua economia.

E assim, ao longo dos próximos milhares de anos, você terá pessoas em diferentes áreas ao redor do mundo sendo forçadas por suas circunstâncias a praticar a agricultura pela primeira vez.

Observe que eu digo “sendo forçadas” a praticar a agricultura. A maioria das pessoas que não está familiarizada com a antropologia relevante pensa que algum gênio inventou a agricultura porque a caça e a coleta seriam precárias e pouco confiáveis, e que a agricultura teria sido um salto gigantesco que todo mundo adotou assim que a descobriram.

Só que na realidade, verifica-se que a vida agrícola é geralmente um grande passo para baixo em relação à vida de caça e coleta em termos de padrão de vida. Sabemos disso desde meados dos anos 1960. Os caçadores-coletores mais recentes estão familiarizados com técnicas agrícolas, mas optam por não se envolver com elas, a menos que precisem, porque seria maluquice.

Enquanto os caçadores-coletores comem uma grande variedade de carne, mel, frutas, nozes e cogumelos, desfrutam de muito tempo de lazer e viajam com suas famílias e amigos, graças às suas semanas de trabalho de 15 a 40 horas, que incluem divertidas viagens de caça com seus amigos, os agricultores trabalham do amanhecer ao anoitecer presos a um pequeno pedaço de terra, trituram grãos em farinha repetidamente por horas e horas, tudo isso para que possam comer uma dieta que consiste principalmente em gororobas insípidas como farinha de milho, ou então pão ou batatas selvagens.

Em termos de estabilidade, segurança alimentar e prevenção de riscos, a agricultura e o armazenamento de alimentos são um ímã para insetos, invasores e conquistadores, e os agricultores estão sujeitos a secas e crises de fome frequentes. Enquanto isso, os forrageadores nômades geralmente têm muitas alternativas e opções quando suas condições climáticas significam que seus alimentos preferidos não estão disponíveis. E em períodos de fome geralmente são os agricultores que vão morar com seus vizinhos caçadores-coletores e não o contrário.

E tudo isso era ainda mais verdadeiro nos primórdios da agricultura, onde as pessoas ainda não haviam descoberto como obter uma dieta balanceada de alimentos agrícolas.

Então, quando examinamos o registro arqueológico, vemos que as pessoas que mudaram da caça e coleta para a agricultura pela primeira vez após o início do Holoceno apresentavam sinais claros de desnutrição e de pior saúde do que seus ancestrais forrageadores.

Em áreas onde havia terras perfeitas para a agricultura, como no oeste da América do Norte, as pessoas continuaram a caçar e coletar por 10.000 anos antes de finalmente serem empurradas para a agricultura.

E quando os marinheiros polinésios, que foram agricultores por milhares de anos, descobriram e se estabeleceram nas vazias ilhas do Havaí e da Nova Zelândia, em ambas as vezes eles abandonaram sua tradicional horticultura, ou seja, sua agricultura de jardins e hortas, e voltaram à caça e coleta. E eles permaneceram caçadores e coletores por centenas de anos, até que as populações nessas novas ilhas ficassem altas demais e eles tivessem de voltar à horticultura.

Acredita-se que a história bíblica da queda do jardim do Éden seja uma metáfora sobre como os ancestrais dos antigos israelitas foram forçados a deixar sua vida de caçadores-coletores de relativa facilidade e fartura para uma vida difícil de trabalho agrícola.

Mesmo a maneira como Adão e Eva ficaram envergonhados de seus corpos depois que deixaram o jardim do Éden reflete a maneira como as culturas de forrageiros de retorno imediato têm muita liberdade sexual, enquanto a vergonha e a repressão sexuais são uma característica regular de muitos de seus vizinhos agrícolas e pastoralistas, por razões que examinaremos em outro momento, relacionados ao patriarcado e à propriedade.

Se você conhece o Antigo Testamento, é sensacional relê-lo tendo em mente o conhecimento antropológico e histórico – acompanhando o tipo de economia que os hebreus e israelitas praticavam em diferentes períodos bíblicos, indo de caçadores e coletores a pastores e de sociedades agropastoris a sociedades estatais – e você pode ver como seus valores e práticas se assemelham às das pessoas recentes de diferentes partes do mundo que praticam esses mesmos tipos de economia hoje ou que os praticavam em tempos recentes.

Corrida populacional

De qualquer maneira, as pessoas mudam da caça e coleta para a agricultura porque precisam – e uma vez que você tenha algumas culturas vivendo principalmente de formas intensivas de agricultura, como o cultivo de arroz e de grãos, o tamanho das populações passa a ser uma questão de corrida, e está dada a largada.

A caça e coleta nômade de retorno imediato sustenta uma população de cerca de 0,1 pessoas por quilômetro quadrado, e portanto eles se reproduzem lentamente para se manter nessa proporção. Eles tendem a amamentar seus filhos até os 3.5 ou 4 anos, e os hormônios produzidos pela amamentação são uma forma natural de contracepção junto de quaisquer outros métodos que eles possam usar, então geralmente eles têm apenas um filho a cada 4 anos, mais ou menos.

Economias de forrageamento sedentárias e mais intensivas, como os indígenas da Costa Noroeste do Pacífico, conseguem sustentar populações de cerca de 1 pessoa por quilômetro quadrado. A agricultura de arroz, entretanto, é capaz de sustentar até 1.000 pessoas por quilômetro quadrado, e os produtores de arroz se reproduzem de acordo com essa capacidade: não é coincidência o fato de que as duas civilizações mais populosas do mundo, Índia e China, terem suas raízes no cultivo de arroz.

Agricultores individuais são mais produtivos e bem-sucedidos se tiverem mais filhos para fazer mais trabalho agrícola por eles; e as mulheres agricultoras param de amamentar com 1 ano de idade por causa da disponibilidade de leite de animais domesticados, então elas tendem a dar à luz a bebês quase todos os anos. Isso os torna mais famintos por terras e mais poderosos, então eles facilmente tomam as terras dos caçadores-coletores.

Quanto mais terra os praticantes de agricultura ocupam, mais os caçadores-coletores existentes ficam espremidos em territórios menores e, eventualmente, são forçados a praticar agricultura, pois deixa de haver terra suficiente para sustentar a caça e coleta de alimentos.

Assim, cerca de 5.000 anos atrás, entrando nos tempos bíblicos, os agricultores já eram a maioria do mundo.

Antes da expansão européia do século 19, ainda havia 20% do mundo disponível para o forrageamento, mas em meados do século 20, a agricultura e a civilização industrial apoiada pela agricultura já estavam por toda parte, exceto nas áreas mais marginais do mundo, onde os forrageadores às vezes ainda permaneciam.

Agri-hierarquia

Isso explica por que a agricultura se espalhou por toda parte, mas por que a expansão da agricultura coincide com a expansão da sociedade hierárquica? A resposta para isso é porque a agricultura apresenta muitas das mesmas realidades logísticas que levam à hierarquia nas sociedades de caça e coleta da Costa Noroeste do Pacífico que vimos no último episódio, exceto que agora com esteróides.

Uma economia sedentária baseada na agricultura significa que você pode armazenar riqueza na forma de alimentos em conserva, ferramentas e outros itens – e a própria terra também se trata de uma forma de riqueza armazenada. Os caprichos do clima e da geografia significam que algumas pessoas são mais afetadas pelas secas do que outras, que algumas terras são mais férteis do que outras, que algumas fazendas são mais atacadas por pragas do que outras e que algumas pessoas têm mais filhos do que outras. E tudo isso significa que, a menos que você tenha um sistema de redistribuição que possa ser cumprido, o que é logisticamente mais difícil em um contexto agrícola, você terá desigualdade de riqueza.

Além do mais, quando os recursos dos quais você depende para viver provêm de territórios fixos, isso dificulta que as pessoas possam simplesmente partir e viver em outro lugar quando alguém está tentando dominá-las, como as pessoas nas sociedades de retorno imediato conseguem fazer, porque isso significa abandonar sua riqueza e seu sustento.

Tudo isso significa que pessoas com mais riqueza e poder podem alavancar esse poder contra as pessoas que têm menos, e que aquelas pessoas que têm menos podem ser dominadas para gerar mais riqueza e mais poder para aquelas que já os possuem.

Mas só porque a hierarquia se torna possível com a agricultura ou com certos tipos de caça e coleta, isso não significa que a hierarquia simplesmente vai acontecer – pelo menos não de imediato. Como Graeber gosta de apontar, os primeiros assentamentos agrícolas no início do Holoceno parecem ter sido igualitários.

Vemos que as casas são todas do mesmo tamanho nesses assentamentos e vemos que as evidências da desigualdade de riqueza às vezes só aparecem séculos depois. Faz sentido, porque o igualitarismo é um valor central das culturas de caça e coleta de retorno imediato, e vemos hoje que, quando as pessoas são pressionadas a abandonar a caça e coleta para praticar agricultura ou trabalho assalariado, elas se apegam a esses valores tanto quanto podem.

Porém, vemos também que esses valores e práticas se chocam com as realidades e incentivos das novas atividades econômicas e dos novos arranjos de vida para os quais eles mudaram – e os valores mudam junto com a realidade ao longo do tempo, à medida que o equilíbrio de poder muda e o igualitarismo já não é mais tão fácil de se impor, ou de se aderir. A igualdade, assim como a hierarquia, precisa ser imposta para que possa se manter, seja por uma política deliberada ou por condições naturais. Existem forças naturais inatas dentro de todos nós pressionando na direção da hierarquia e também na direção da igualdade, dependendo de nossos interesses, necessidades, circunstâncias e de nossas inclinações aprendidas e inatas. Quando a igualdade não estiver funcionando para você, você tende a querer mais desigualdade a seu favor. E quando você estiver no nível mais inferior de uma hierarquia, tende a querer mais igualdade.

Quando o trabalho é árduo e estressante, e não há recursos suficientes para deixar todos felizes, os mecanismos sociais que reforçam e impõem o igualitarismo começam a implodir. O compartilhamento é muito menos atraente quando isso significa que todos recebem uma parte igual e insuficiente, mesmo para pessoas que foram criadas com uma ética profundamente igualitária. Vimos no último episódio, por exemplo, como os caçadores-coletores ferozmente igualitários do Deserto do Calaári às vezes começam a brigar pela divisão da carne quando não há o suficiente para todos; ou o exemplo dado por Colin Turnbull, sobre como os Mbuti às vezes escondem parte da comida que coletam para não ter de compartilhá-la.

Quando os tempos estão difíceis, torna-se muito mais interessante inventar um monte de desculpas para explicar porque você merece mais e outra pessoa merece menos: você é tão lindo, você trabalha tanto, Deus te ama, e a outra pessoa tem cara de cocô, é péssima, é feia, e Deus a odeia, e Deus quer que você fique com a parte dela. Veja a história bíblica de como Jacó engana Isaque para que ele lhe dê a herança de Esav, por exemplo. Desta forma, a ideologia e as práticas redistributivas igualitárias começam a se desgastar e, eventualmente, acabam desmoronando, caso uma crise dure por um período prolongado de tempo.

Se você estiver vivendo em um bando de caçadores-coletores de retorno imediato, o resultado disso será o colapso social porque não há meios práticos para impor qualquer tipo de hierarquia econômica ou política. Foi o que aconteceu com o povo Ik em Uganda, que foi expulso de suas terras na década de 1960, logo após ter sobrevivido a uma seca. Sua ética igualitária se transformou em um violento cada um por si, e sua sociedade entrou num colapso horrível até que conseguiram se recuperar e se reconstituir como horticultores, onde reviveram alguns de seus valores e práticas igualitários, mas não todos.

Mas se você vive em um assentamento agrícola, o resultado do declínio de práticas igualitárias será a desigualdade e a hierarquia, porque nesse contexto a realidade material permite que algumas pessoas tenham mais do que outras sem que a sociedade entre em colapso. E, à medida que as pessoas se recusam a cumprir com as normas de compartilhamento igualitário e se safam, novas normas e práticas começam a surgir, que refletirão esse novo equilíbrio de poderes.

Este é o mecanismo para a experimentação de que David Graeber está falando.

Além disso, em um contexto sedentário, uma vez que você permita que uma certa desigualdade exista por muito tempo sem fazê-la recuar, ela tenderá a se transformar em uma bola de neve e, eventualmente, será impossível revertê-la sem violência – porque em uma economia sedentária, riqueza e poder desiguais lhe dão a capacidade de ganhar mais riqueza e mais poder. Se já não praticamos o compartilhamento e se sua fazenda tiver uma colheita ruim, mas a minha se sair melhor, vou te emprestar dinheiro ou comida para que você sobreviva. Se você não conseguir pagar suas dívidas, tomarei sua fazenda e você se tornará meu trabalhador e me dará todo o seu excedente. Agora eu sou a pessoa mais rica da vila antigamente igualitária -. e como eu detenho tanto excedente, as pessoas vêm até mim sempre que precisam de empréstimos e, com o tempo, acabo tendo mais e mais terras, trabalhadores e riquezas, até que eu seja um rei e vocês sejam todos meus escravos ou até que todos vocês se revoltem e me matem. Esta história é quase tão antiga quanto a agricultura. É por isso que havia jubileus de dívida regularmente nos tempos bíblicos. David Graeber escreveu um livro inteiro sobre o tema! E é também por isso que o chamado “capitalismo libertário” é uma receita para o feudalismo, como veremos em um episódio futuro.

Há um livro assustador de 2018 chamado The great leveler (“A grande niveladora”, no Brasil, Violência e a história da desigualdade: da Idade da Pedra ao século XXI), de Walter Scheidel, onde ele compila todos os dados disponíveis sobre a desigualdade ao longo da história e pré-história da humanidade. Ele percebe que, desde o advento da agricultura, a desigualdade quase sempre infla até o ponto em que haja uma pequena elite vivendo a partir de uma população explorada ao máximo, que vive uma mera subsistência – e que a única maneira de acabar com essa enorme desigualdade é por meio de uma catástrofe gigante como uma grande guerra, doença ou fome, que cause um colapso social que reduza todos ao mesmo nível de pobreza. Ou então, mais recentemente, foi possível reduzir a desigualdade por meio de grandes revoluções, que frequentemente não chegam aos resultados pretendidos por vários motivos, como veremos em outro momento.

De qualquer maneira, é assim que a igualdade se torna hierarquia, e isso pode acontecer rapidamente ou pode levar séculos. Como vimos da última vez, os povos da Costa Noroeste do Pacífico levaram 800 anos para desenvolver sinais de hierarquia econômica, a partir do momento em que começaram a praticar a sua economia sedentária baseada no salmão. Vemos períodos semelhantes para a transição para a hierarquia em muitas sociedades agrícolas primitivas que se estabeleceram perto do início do Holoceno.

Dominação masculina

Mas mesmo antes do advento da desigualdade econômica, provavelmente havia outro tipo de hierarquia política surgindo naqueles primeiros assentamentos agrícolas, que é a hierarquia de gênero, ou seja, o patriarcado, também conhecido como dominação masculina – os caras mandam; bros before hoes; manos primeiro, minas depois – ou seja, a ideologia e a prática onde os homens possuem mais poder de decisão do que as mulheres.

Existem muitas sociedades agrícolas, pastoris e algumas sociedades de caçadores-coletores de retorno retardado onde há mecanismos para compartilhar e redistribuir riqueza e poder entre os núcleos familiares, mas onde os homens dominam as mulheres e crianças no interior das famílias. Isso é chamado de igualitarismo masculino.

Diferentes circunstâncias podem levar à hierarquia de gênero, mas uma das principais fontes da hierarquia de gênero tem sido a patrilocalidade: quando ao casar as mulheres se mudam para onde o marido e a família dele vivem.

Então, vejamos como a patrilocalidade afeta as relações de gênero e por que as pessoas escolhem adotá-la, em primeiro lugar.

Horticultura

No último episódio falei um pouco sobre os caçadores-coletores Mbuti, que vivem na floresta tropical de Ituri, no Congo. Os Mbuti têm uma relação próxima com seus vizinhos horticultores falantes de língua bantu, os Lese.

Os Lese praticam a horticultura de corte-e-queima, que ainda hoje é amplamente praticada ao redor do mundo. Uma sociedade hortícola se organiza em torno do cultivo de plantas domesticadas, geralmente raízes feculentas como inhame, mandioca e taro – batatas selvagens. As pessoas nas sociedades hortícolas geralmente também praticam um pouco de caça e coleta, e muitas vezes mantêm alguns animais domesticados.

Agora, os Lese possuem uma relação muito diferente com a floresta tropical do que os Mbuti. Onde os Mbuti vivem na floresta tropical, os Lese criam aldeias derrubando a floresta tropical para plantar suas colheitas e erguer suas aldeias.

As diferentes práticas de subsistência dos Mbuti e Lese resultam em estruturas sociais e visões de mundo extremamente diferentes. Os Mbuti se enxergam como parte da natureza e se veem como uma das muitas criaturas da floresta – e eles veem a própria floresta como sua mãe e seu pai provedores, o que é uma metáfora comum entre caçadores e coletores que vivem em ambientes florestais ao redor do mundo. Em contraste, os Lese veem a floresta e a natureza em geral como sua inimiga, uma fera assustadora e feroz, cheia de magia maligna que está sempre ameaçando suas roças e suas vidas, e que deve ser constantemente domada pela civilização humana, que é hierarquicamente ordenada acima da natureza e acima dos animais inferiores, incluindo os selvagens Mbuti.

E enquanto os Mbuti são uma das sociedades mais igualitárias na questão do gênero em todo o mundo, seus vizinhos Lese são uma das mais patriarcais. Entre os forrageadores da África Central, como os Mbuti, não é incomum uma mulher sair como líder em uma expedição de caça com rede, enquanto o marido fica em casa com as crianças. Entre os Lese, enquanto os homens passam a maior parte do dia com seus amigos na praça da aldeia, atirando coisas, bebendo cerveja e conversando sobre como os caras são os maiorais, as mulheres estão todas em casa fazendo a maior parte da agricultura, criando os filhos e cozinhando a comida, da qual normalmente comem as sobras depois que os homens se saciam.

Os homens Lese fazem algum trabalho – como caçar e derrubar a floresta tropical para plantar novas roças – basicamente, eles fazem qualquer tipo de trabalho que achem divertido, ou que envolva facas e armas, que as mulheres são ritualmente proibidas de tocar – o que, não coincidentemente, as deixa menos propensas a assassinar seus maridos ou derrubar o patriarcado.

Agora, a diferença nas visões de mundo entre essas duas culturas é fácil de entender em termos de sua relação com seus ambientes. A economia Mbuti baseia-se em obter tudo o que precisam da natureza, enquanto a horticultura Lese é uma batalha sem fim contra a natureza.

Mas suas diferentes visões sobre gênero são baseadas em outra coisa. Em termos de ideologia de gênero, homens e mulheres Mbuti reclamam uns dos outros, mas também se consideram iguais, ainda que às vezes como iguais que competem entre si. Enquanto isso, na cultura dos Lese, os homens são associados à civilização, à ordem e à agricultura, e as mulheres são associadas à natureza, às forças das trevas e ao caos – como numa palestra de Jordan Peterson.

E a visão Jordan-Petersoniana dos Lese sobre as relações de gênero é típica de muitos povos agrícolas, como os antigos israelitas, que eram agro-pastoralistas. Esses “arquétipos” de homem = “ordem e civilização” versus mulher = “caos e natureza” não são universais da maneira como Peterson os faz parecer, mas eles são sim típicos de culturas com uma origem agrícola e patriarcal – que é o caso da maioria das sociedades industrializadas, o que faz com que eles pareçam universais se você não conhecer Antropologia.

Agora, a hierarquia de gênero não passa a existir porque as pessoas acreditam nos arquétipos de Jordan Peterson – as pessoas acreditam nesses arquétipos porque a hierarquia de gênero existe. A hierarquia de gênero existe porque as condições materiais em que as pessoas vivem dão aos homens mais poder do que às mulheres.

Como isso acontece? Vamos conferir.

Casamento patrilocal

Em qualquer sociedade, geralmente busca-se evitar a endogamia. Digo “geralmente” porque há exceções, que obviamente possuem origens materiais, baseadas na necessidade de se apegar à propriedade e ao poder – mas isso fica para outro episódio. Então, para evitar a endogamia, geralmente alguém precisa se afastar de sua família para se casar.

O novo casal terá algumas opções: eles podem se mudar para a área da esposa, o que é chamado de matrilocalidade; ou para a área do marido, o que é chamado de patrilocalidade; ou para um novo local, o que é chamado de neolocalidade; ou eles ficarão com suas respectivas famílias e só se encontrarão para sexo e troca de presentes, o que é chamado de duolocalidade; ou então, existe a avunculocidade, onde eles vão morar com o irmão da mãe. E quando não há regra, quando os casais podem ir aonde quiserem, isso é chamado de ambilocalidade.

Não existem outras regras de residência pós-matrimonial praticadas por qualquer sociedade humana, apenas essas 6 opções. Mesmo que seja possível imaginar uma regra onde as pessoas vão morar com a irmã da mãe, irmão do pai ou irmã do pai, etc, nenhuma sociedade apresenta tal regra.

As diferentes sociedades escolhem um ou outro desses 6 padrões e nenhum outro, por razões práticas específicas. Depois, a escolha que elas fazem geram enormes consequências não intencionais para as relações de gênero.

A patrilocalidade, onde os homens ficam com suas famílias biológicas e as mulheres deixam as suas para ir morar com a família de seus maridos, é uma solução que quase sempre resulta em dominação masculina e patriarcado. Por quê? E por que a maioria das culturas escolhe a patrilocalidade em vez de uma das outras opções?

A patrilocalidade estrita é geralmente preferida quando sua aldeia, seu rebanho ou seu território tem uma boa chance de ser invadido ou atacado de surpresa, principalmente por comunidades vizinhas. As mulheres podem ser lutadoras e caçadoras eficazes em algumas sociedades, mas, em geral, os homens são na média lutadores melhores ou mais confiáveis, visto que tendem a ser 15% maiores que as mulheres e que não tendem a ficar fora de forma para o combate por longos períodos devido à gravidez ou por ter dado à luz recentemente. E se você tiver que repelir muitos ataques, faz sentido ter na sua área muitos homens aparentados, que cresceram juntos e que se conhecem bem, pois eles tenderão a compor uma força de combate instantânea melhor do que homens não aparentados e que não se conhecem muito bem.

Horticultores de língua bantu como os Lese se engajavam em muitas guerras por suas terras e colheitas, bem como em muitas rixas internas antes da década de 1940, quando o governo colonial belga e mais tarde os governos zairense e congolês passaram a reprimir a violência não-estatal. Então, muito provavelmente, a patrilocalidade foi originalmente adotada pelos Lese como uma escolha prática para lidar com rixas e guerras.

A consequência positiva da patrilocalidade é uma melhor defesa, o que beneficia a todos. Mas ela também vem com uma grande consequência negativa não intencional para as mulheres: a dominação masculina.

Por quê? Bem, você tem essas aldeias de cerca de 100-250 pessoas, e quase todos os homens são parentes, cresceram juntos e se conhecem. Enquanto isso, todas as mulheres adultas da aldeia vêm de várias outras aldeias e geralmente não se conhecem muito bem. Se houver um conflito entre um homem e sua esposa, é provável que o homem obtenha apoio de seus parentes e amigos, enquanto a mulher, não. Os amigos e familiares dela moram longe e até mesmo suas companheiras de aldeia não a conhecem tão bem. E como elas também estão isoladas, não vão querer chacoalhar o barco e irritar a maioria da aldeia ao defender a outra forasteira. Isso cria uma situação em que, em qualquer conflito entre um homem e uma mulher, o homem normalmente leva vantagem. Em outras palavras, a patrilocalidade gera uma situação em que os homens têm muito mais poder de barganha do que as mulheres.

Transição para o patriarcado

Mas por que uma comunidade inicialmente igualitária mudaria para o patriarcado quando passasse para a residência patrilocal? Por que seus valores feministas igualitários não impedem o surgimento do patriarcado?

Sociedades igualitárias valorizam e afirmam ativamente seu igualitarismo e sua autonomia. As crianças aprendem desde muito pequenas que todas as coisas devem ser compartilhadas com as pessoas que as quiserem ou que precisarem delas. Quando a musicóloga Michelle Kisliuk deu a alguém sentado ao lado dela uma fatia de tomate, ele imediatamente cortou a fatia em 16 pedacinhos e deu uma para cada pessoa ao seu redor, deixando-a se sentindo como uma porca grosseira com o restante do tomate.

Além disso, os homens e as mulheres também valorizam e afirmam ativamente sua igualdade de gênero, certificando-se de que nenhum indivíduo ou gênero jamais se sinta “grande demais para caber nas suas calças”.

Mas as tensões de gênero ainda existem nessas sociedades, assim como em qualquer sociedade, e o igualitarismo não é apenas uma preferência, é também necessário para a sobrevivência. Não há alternativa além do colapso do bando ou da mudança para uma vida agrícola sedentária. É por isso que o igualitarismo é um valor tão importante, em primeiro lugar. Portanto, existem instituições culturais para atenuar as tensões de gênero e outras inerentes às sociedades igualitárias.

Entre os Mbuti, existe um ritual de cabo de guerra dos sexos sobre o qual você pode ler nos livros de Colin Turnbull, que é literalmente uma brincadeira de cabo de guerra, onde todos os homens ficam de um lado e todas as mulheres ficam do outro.

Se o lado masculino começa a vencer, um homem correrá para o lado feminino, onde imitará as mulheres de maneira zombeteira, elevando o tom de sua voz e falando sátiras de coisas femininas. E então, quando as mulheres começam a ganhar, uma mulher corre para o lado dos homens e começa a zombar do discurso e das ideias masculinas. A brincadeira continua até que todos mudem de lado e as mulheres estejam agindo como caricaturas de homens e os homens agindo como caricaturas de mulheres, e eventualmente todos caem na gargalhada e ninguém vence.

E depois há os mitos dos homens e os mitos das mulheres que são exclusivos de cada gênero, onde eles zombam do outro gênero e afirmam sua própria importância.

Por exemplo, as mulheres Mbuti têm uma história que compartilham em reuniões e eventos exclusivamente femininos, e que foi contada à antropóloga Cathryn Townshend. Nesta história, o chimpanzé, que é macho, quer se casar com a tartaruga, que é fêmea, mas a tartaruga não está interessada. O chimpanzé consegue convencer a tartaruga a aconchegar-se e dormir ao lado dele platonicamente à noite para se aquecer. Mas então, no meio da noite, ele saca seu pênis para tentar fazer sexo com ela. A tartaruga está preparada para isso, ela tem uma pedra afiada pronta e a usa para cortar o pênis dele imediatamente e então ele sangra até morrer.

Depois, no dia seguinte, a tartaruga vai até o grande e forte elefante macho e lhe diz que ela é mais forte que ele. O elefante ri e a tartaruga diz a ele que ela pode provar que é mais forte – que ela vai amarrar a perna dele na perna dela com uma corda, e quem conseguir puxar até derrubar o outro vence. Então o elefante fica com uma atitude do tipo “pff, os caras são maiorais”, amarra a sua ponta da corda em volta da perna e a tartaruga, que está em pé no topo de uma rocha gigante na água com as pernas escondidas embaixo d’água, amarra a sua ponta na grande rocha.

Daí o elefante puxa, puxa, mas não consegue fazer a tartaruga vir abaixo, até que finalmente ele tenta com tanta força que tropeça em si mesmo, cai e quebra suas presas. E então a tartaruga o chama de idiota estúpido, o espanca e o perfura até a morte.

Portanto, o ponto dessa história é que, embora os homens possam ser fisicamente mais fortes, sua arrogância e suas libidos estúpidas são suas grandes fraquezas, e as mulheres são mais espertas e podem vencer qualquer homem com sua inteligência, cautela, e com uma pedra afiada.

E os homens têm as suas próprias histórias que contam uns aos outros, que denigrem as mulheres e que alardeiam os atributos masculinos. Homens e mulheres mantêm o equilíbrio entre os gêneros por meio de organizações e sociedades secretas masculinas e femininas, que estabelecem as coalizões de que precisam para afirmar sua força e manter um ao outro sob controle. Jerome Lewis fala sobre como entre os Mbendjele a organização de mulheres exilou um excelente caçador porque ele era arrogante demais, o que é considerado inaceitável, bem como uma ameaça perigosa em sociedades igualitárias.

Entre os caçadores-coletores Aka, que são parentes próximos dos Mbuti, as mulheres cantam canções que zombam dos homens em público diante de uma audiência mista, com letras como:

O pênis não dá à luz nada, só urina!

ou

O pênis não tem como competir / a vagina sempre ganha!

E às vezes os homens encaram com senso de humor essas coisas, mas outras vezes não. Essas performances costumam ser um barômetro das relações de gênero em um determinado momento, dependendo do que está acontecendo. Assim, por exemplo, quando os Aka estão vivendo no interior da floresta, onde fazem sua tradicional caça e coleta nômade, as tensões de gênero geralmente são menores. Mas quando eles passam o tempo nas aldeias de seus vizinhos agricultores, as tensões de gênero tendem a crescer. Os homens Aka fazem trabalho assalariado e servil para os aldeões e, às vezes, ficam ressentidos com a autonomia das mulheres. Então, às vezes, quando as mulheres cantam e dançam suas canções de insulto aos homens, homens tentam interferir levantando poeira em quem pratica a performance ou provocando o público. Você pode ler muito mais sobre como homens e mulheres usam música e dança para negociar e afirmar seu igualitarismo em um artigo chamado The politics of Eros (“A política de Eros”), de Morna Finnegan, ou no livro de Michelle Kisliuk, Seize the dance (“Tomando a dança”, em tradução livre).

Portanto, há igualdade de gênero e cooperação de gênero, mas também tensão e competição. Onde as condições materiais não fornecem meios para que alguém obtenha uma vantagem material sobre os outros, essa competição é eficaz para manter todos sob controle e manter o equilíbrio.

Como no jogo de cabo de guerra onde nenhum lado pode vencer, nenhum dos lados pode vencer o cabo de guerra da vida real: é sempre um empate. Há rituais e histórias para ajudar a aliviar as tensões e garantir relações igualitárias estáveis e harmoniosas, ao invés de relações igualitárias tensas e caóticas que poderiam levar ao colapso.

No entanto, uma vez que você esteja em uma situação em que há residência patrilocal, as condições materiais agora são tais que os homens quase sempre vencerão o cabo de guerra da vida real. À medida que as pessoas eventualmente percebam esse fato, isso também vai informar o seu comportamento. Os homens já não serão mais tão estóicos para se controlar e as mulheres terão medo de revidar com tanta ousadia quanto anteriormente. E assim as normas igualitárias são rompidas, especialmente em tempos de dificuldades e crises.

Pense na nossa própria sociedade – já sabemos que quando as pessoas passam por períodos de desemprego e outras dificuldades, casamentos terminam – as taxas de divórcio disparam, assim como os incidentes de violência doméstica. Em um ambiente agrícola, onde o divórcio é difícil ou mesmo impossível por várias razões práticas, as pessoas muitas vezes ficam presas a esses casamentos, e os ressentimentos seguem fervendo e borbulhando sob a superfície por anos.

Além disso, mesmo em bons tempos, boa parte da agricultura é em si mesma uma condição difícil e estressante. No forrageamento de retorno imediato, a maior parte do trabalho é de certa forma agradável; na agricultura, porém, muito do trabalho que precisa ser feito é enfadonho e extenuante, e sua dieta muitas vezes não é muito gratificante – especialmente nos primórdios da agricultura.

Portanto as pessoas não estão muito bem nutridas, fazem um trabalho árduo e estão presas no mesmo lugar o tempo todo. Se você já teve um emprego ruim com salário baixo, onde teve de trabalhar 60 horas por semana e mal conseguia pagar pelo macarrão instantâneo ou pelo aluguel de um apartamento carcomido no meio do nada, você deve ter uma ideia de como é essa sensação.

Então, imagine uma sociedade dos primórdios agrícolas que possui igualdade de gênero e que adotou um padrão de residência patrilocal porque vem sendo invadida e pilhada repetidamente pelos seus vizinhos.

A princípio, os homens e as mulheres dividem seu trabalho e outras tarefas igualmente, ou talvez os homens façam o trabalho mais difícil, já que são mais fortes. Os homens trituram mandioca o dia todo, cavam buracos para as roças e praticam um pouco de caça, e as mulheres fazem o trabalho doméstico, cuidam das crianças e de boa parte da coleta, também praticam um pouco de caça, e todo mundo anda meio estressado e não muito bem nutrido, então todo mundo está frustrado.

Um dia, durante um ano particularmente ruim em que todos estão passando fome, marido e mulher andam discutindo sobre alguma coisa, e as tensões que vinham borbulhando sob a superfície há meses explodem e o marido faz algo que antes seria impensável. Ele bate na esposa.

Agora, sabe-se que altercações físicas entre homens e mulheres acontecem em sociedades de caçadores-coletores igualitários. Entre os Aka, quase sempre são as mulheres que agridem fisicamente os homens e nunca o contrário. Na maioria das sociedades igualitárias, se um homem perde o controle e bate em uma mulher, a mulher apenas revidará batendo mais que ele, e o homem restringirá sua resposta, porque se não o fizer, os amigos e parentes de sua esposa, homens e mulheres, correrão para apoiá-la e ele terá de enfrentar outras consequências sociais.

Só que neste caso, nada acontece.

Todos os amigos de infância e parentes dele estão por perto, mas nenhum dos dela. Além disso, todos esses homens estão passando pelas mesmas frustrações com suas esposas e pelas mesmas discussões e disputas que ele. “As mulheres não são tão irritantes com suas reclamações, exigências e necessidades enquanto nós, homens, estamos trabalhando tanto, sem obter o suficiente para comer e nem recebemos nenhum crédito ou respeito?” Quanto ao apoio de outras mulheres, em sociedades de forrageadores igualitários as mulheres passam muito tempo juntas enquanto praticam coleta e constroem solidariedade dessa forma, sejam elas parentes ou não. Mas as mulheres nas sociedades de horticultura passam a maior parte do dia trabalhando sozinhas. E todas as mulheres isoladas, vindas de outras aldeias, não querem provocar seus maridos. As redes sociais que entrariam em ação para defender o interesse das mulheres não existem aqui.

O cabo de guerra está em pleno vigor – os homens estão mais antagônicos às mulheres do que nunca, e as mulheres estão mais antagônicas aos homens do que nunca – mas por causa da nova situação de residência, os homens agora têm todo o poder.

Com o tempo, uma vez que os homens comecem a perceber que não há nenhuma consequência verdadeira em bater nas suas esposas, eles deixam de se controlar quando suas esposas revidam. Vão e fazem isso de novo e com mais frequência. Eles percebem que, em qualquer conflito com suas esposas, é muito provável que sejam os vencedores. E as esposas também percebem isso. Os homens passam a usar isso como uma ameaça para conquistar mais concessões das mulheres. “Quer saber, eu vou fazer todo o trabalho divertido, como a caça, e vou passar um tempo com meus amigos e você pode passar o dia triturando mandioca e cavando para a horta. E não se atreva a me responder mal.” E se uma mulher revidar com armas ou veneno – todos os irmãos e parceiros de infância dele correrão para detê-la, atacá-la ou matá-la.

Além do mais, quando não há ninguém para te colocar sob controle cantando canções ofensivas que tiram sarro de você, sua visão de mundo e a visão de mundo das pessoas na mesma situação que a sua não é contestada e sai dos trilhos – logo os mitos, a ideologia e os rituais começam a refletir isso. O ponto de vista masculino predomina, sem qualquer resposta das mulheres, que apenas fervem em silêncio e medo.

As explosões das mulheres são irracionais, as dos homens são justificadas. As mulheres são caóticas, emocionais e irracionais, elas precisam ser domesticadas e controladas pelos homens, assim como o homem precisa controlar a natureza. As mulheres são bruxas que querem envenenar a nós homens, e lançar magia negra sobre nós, então devem ser proibidas de tocar em armas e de coletar bagas ou cogumelos potencialmente venenosos. E mulheres isoladas e oprimidas sem meios efetivos de se afirmarem muitas vezes de fato se interessam em envenenar os homens que as governam, e em lançar magia negra sobre eles, como sua única forma de escapar ou retaliar.

E assim o igualitarismo de gênero desaparece e o patriarcado se torna institucionalizado. Os homens ensinam às filhas que elas são sujas e caóticas e que elas merecem trabalhar na roça o dia todo para compensar pelos pecados de Eva. E as mulheres também chegam a acreditar nesse tipo de coisa, até certo ponto, e perdem o senso de que merecem o direito à igualdade, o qual é necessário para se continuar lutando pelos seus direitos – além de que elas também são recompensadas se obedecerem, o que as torna envolvidas com a sua própria opressão.

Bum! Está instaurado o patriarcado

David Graeber estava correto ao dizer que as pessoas realizam experimentos com as formas sociais e que elas fazem escolhas conscientes. Só que as escolhas e os experimentos que fazemos são severamente limitados e informados pelo nosso poder de barganha, que é determinado pelas realidades práticas do nosso ambiente, nossa economia, bem como nossa história e nossa cultura. As pessoas estão constantemente puxando e empurrando em uma direção ou outra – mas é o poder de barganha que determina qual visão vencerá, quais experimentos produzirão resultados e quem será favorecido pelo inevitável novo acordo.

É possível observar esse fenômeno: por todo o mundo, pessoas em situações muito parecidas acabam tendo instituições culturais muito semelhantes. Vimos da última vez que caçadores-coletores de retorno imediato em todo o mundo compartilham muitos traços culturais importantes, e também podemos ver a mesma coisa com outros tipos de sociedades que vivem em situações muito semelhantes. Por exemplo, os pastores nômades são sempre patrilocais e patriarcais, porque os rebanhos de animais são sempre o principal alvo de ataques. Daí você verá todo tipo de semelhanças entre diferentes sociedades pastoralistas nômades, sejam os africanos Maasai, os escandinavos Saami, os mongóis, os beduínos ou os antigos israelitas.

Conclusão

Algumas pessoas, como David Graeber, parecem ver toda essa linha de raciocínio materialista como uma coisa extremamente incapacitante e determinista, ao ponto dela ter se tornado praticamente um tabu nos departamentos de antropologia cultural. Isso não sugere que não há nada que possamos fazer para mudar nossa situação política? Não retira nossa agência? Se as condições materiais determinam nossas estruturas sociais e hierarquias políticas, como podemos melhorar nossas vidas sem ser apenas esperando que as realidades materiais mudem?

A resposta é que se compreendermos nossas condições materiais, poderemos nos engajar em ações bem informadas, organizadas e combinadas para mudar essas condições e mudar o equilíbrio de poder. Foi para isso que comecei este podcast. A análise materialista nos ajuda a descobrir por que as coisas são do jeito que são e nos auxilia a identificar quais são os obstáculos para os objetivos que queremos alcançar e quais restrições existem à nossa capacidade de transformar as coisas. Mas ela também nos ajuda a identificar o poder de barganha latente e como tirar proveito dele, a fim de nos livrar desses obstáculos e fazer a mudança política acontecer.

E é isso que veremos na próxima, quando examinaremos a residência matrilocal, a revolta dos camponeses ingleses em 1381, por que as mulheres obtiveram o direito de voto na Europa no século 20 e por que o movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos surgiu após a Segunda Guerra Mundial. Examinaremos também duas situações em que grandes transformações sociais aconteceram da noite para o dia – uma por acidente e outra por décadas de organização deliberada e aproveitamento das condições certas: a revolução anarquista da década de 1930 na Espanha, onde havia hierarquia democrática e um socialismo dirigido pelos trabalhadores sem um Estado e, é claro, a grande revolução dos babuínos de 1986, que ainda segue forte atualmente.

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Certifique-se de verificar as notas do programa abaixo para obter uma bibliografia de tudo o que falei neste episódio.

Até a próxima, nos vemos por aí!


Bibliografia / leituras sugeridas

Hierarquia vs. igualdade na Pré-História

Christopher Boehm 1999 – Hierarchy in the Forest [“Hierarquia na floresta”]

Graeber & Wengrow 2015 – Farewell to the ‘childhood of man’: ritual, seasonality, and the origins of inequality [“Adeus à ‘infância do homem’: ritual, sazonalidade e a origem da desigualdade”] Journal of the Royal Anthropological Institute, Vol 21, N° 3

Graeber & Wengrow 2018 – How to change the course of human history [”Como mudar o curso da história humana”], Eurozine

Shulnitzer et al 2009 – Causes and scope of political egalitarianism during the Last Glacial [“Causas e escopo da política igualitária na Última Glaciação”], Philosophy and Biology, Vol. 25 [sobre porquê o igualitarismo tendia a ser a norma no Paleolítico, apesar de algumas descobertas de sociedades hierárquicas naquele período]

Camilla Power 2018 – Gender egalitarianism made us human: A response to David Graeber & David Wengrow [“O igualitarismo de gênero nos tornou humanos: uma resposta à David Graeber & David Wengrow”], libcom (também disponível como palestra em vídeo)

Camilla Power 2018 – ‘Communism in Living’; What can early human society teach us about the future? [“Comunismo no viver: o que as primeiras sociedades humanas podem nos ensinar sobre o futuro”], libcom

Igualitarismo e relações de gênero

Jerome Lewis 2014 – Egalitarian Social Organization Among Hunter-Gatherers: The Case of the Mbendjele BaYaka [“”Organização social igualitária entre caçadores-coletores: o casos dos Mbendjele BaYaka], em Hewlett (ed) 2014 – Hunter-Gatherers of the Congo Basin [“Caçadores-coletores da Bacia do Congo ”]

Michelle Kisliuk 2006 – Seize the Dance! (“Tomando a dança”, em tradução livre) [ver o capítulo 7, Women’s Dances, the Politics of Gender (“Danças das mulheres, a política do gênero”) ]

Morna Finnegan 2013 – The politics of Eros: ritual dialogue and egalitarianism in three Central African hunter-gatherer societies [“A política de Eros: diálogo ritualístico e igualitarismo em três sociedades de caçadores-coletores centro-africanas”], Journal of the Royal Anthropological Institute, Vol. 19, N° 4

Jerome Lewis 2007 – Ekila: blood, bodies, and egalitarian societies [“Ekila: sangue, corpos e sociedades igualitárias”], Journal of the Royal Anthropological Institute Vol 14.

Colin Turnbull 1961 – The Forest People [“O povo da floresta”, inclui a história do cabo de guerra de gêneros]

Barry Hewlett 1991 – Intimate Fathers [“Pais íntimos”]

Cathryn Townsend 2019 – Emerging Patriarchy in the Mythology of a Previously Egalitarian Society [“O patriarcado emergente na mitologia de uma sociedade anteriormente igualitária”] (video) 

Transição para a agricultura

Richerson et al 2001 – Was Agriculture Impossible during the Pleistocene but Mandatory during the Holocene? A Climate Change Hypothesis [“Seria a agricultura impossível durante o Pleistoceno e mandatória durante o Holoceno? Uma hipótese sobre mudança climática”], American Antiquity, Vol. 66, No. 3

Mark Nathan Cohen 1977 – The Food Crisis in Prehistory [“A crise alimentar na Pré-História”]

Mark Nathan Cohen 1998 – Were Early Agriculturalists Less Healthy Than Food-Collectors?  [“Seriam os primeiros agricultores menos saudáveis que os coletores de comida?”] em Ember, Ember & Pellegrine (eds) 1998 – Research frontiers in anthropology. Volume I, Archaeology

Mark Nathan Cohen 2009 – Rethinking the Origins of Agriculture [“Repensando a origem da agricultura”], Current Anthropology Vol. 50, No. 5 (university paywalled)

Valerie Ross 2011 – Early Farmers Were Sicker and Shorter Than Their Forager Ancestors [“Os primeiros lavradores eram mais doentes e mais baixos que seus ancestrais forrageiros”], Discover, June 17 2011

Residência patrilocal e dominação masculina

Ember & Ember 1971 – The Conditions Favoring Matrilocal Versus Patrilocal Residence [“As condições favorecendo a residência matrilocal versus a residência patrilocal”], American Anthropologist, Vol. 73, N° 3 

Pasternak 1997 – Family and Household: Who Lives Where, Why Does It Vary, and Why Is It Important? [“Família e núcleo familiar: quem vive onde, por que isso varia e por que isso é importante?”] em Ember & Ember (eds.) 1995 – Cross-Cultural Research for Social Science

Mace & Holden 2003 – Spread of cattle led to the loss of matrilineal descent in Africa [“A propagação de gado levou à perda da linhagem matrilinear na África”], Proceedings of the Royal Society of London B, Vol. 270, N° 1532

Dyble et. al. 2015 – Sex equality can explain the unique social structure of hunter-gatherer bands [“A igualdade sexual pode explicar a estrutura social única dos bandos de caçadores-coletores”], Science, May 2015

Outros temas

Keely 1995/2014 – The Foraging Spectrum [“O espectro do forrageamento”]

Cathryn Townshend 2020 – Neither nasty nor brutish [Nem sórdidos e nem brutais], Aeon  (sobre o colapso social dos Ik)

Carl Philip Salzman 2008 – Crisis and Conflict in the Middle East [“Crise e conflito no Oriente Médio”] (um exemplo de análise materialista de direita)

Mauss 1950 – Seasonal Variations of the Eskimo [“Variações sazonais dos esquimós”], (citado por Graeber & Wengrow)

Levi-Strauss 1944 – The Social and Psychological Aspect of Nambikwara Chieftainship [“Os aspectos sociais e psicológicos da chefia nambiquara”], Transactions of the New York Academy of Sciences, Vol 7 No. 1, Series II (university paywalled)   (citado por Graeber & Wengrow)

Um pensamento sobre “As origens da dominação masculina e da hierarquia social

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