Como acontecem as mudanças sociais? Materialismo versus idealismo

Os seres humanos têm livre arbítrio, mas nossas ações são limitadas pelas realidades materiais. Compreender a maneira como as condições materiais e práticas moldam o comportamento e a consciência dos seres humanos pode fazer toda a diferença entre o sucesso e o fracasso catastrófico quando se trata de todo o espectro da ação política, desde a negociação no setor privado até a elaboração de legislação ou mesmo a realização de uma revolução.

transcrição do podcast What is Politics (“O que é política”)


Este artigo é a transcrição do episódio 8 do podcast What is Politics. É o terceiro de uma série sobre Antropologia Política (que se encaixa em uma série maior de Introdução à Política). Essa série discute as origens das hierarquias nas sociedades humanas diante do conhecimento construído em diferentes áreas como Antropologia e Arqueologia. Mais à frente a série passou a focar em comentários críticos sobre o livro “O despertar de tudo: Uma nova história da humanidade“, de David Graeber e David Wengrow.


Neste episódio sobre mudanças sociais, consciência e condições materiais vamos analisar:

  • A relação entre as atividades econômicas e o status elevado das mulheres na sociedade tradicional dos Haudenosaunee/Iroqueses.
  • Como a Primeira Guerra Mundial ajudou as mulheres a conquistarem o direito ao voto na Europa e na América do Norte.
  • Como a Segunda Guerra Mundial catalisou o movimento pelos direitos civis para os negros nos EUA.
  • Como a Revolta dos Camponeses na Inglaterra em 1381 quase teve sucesso em derrubar o feudalismo e porque ela fracassou.
  • As implicações da Revolução Anarquista na Espanha entre 1936-1939 para o futuro da civilização industrial.

Olá, amiguinhos, e sejam bem vindos de volta ao “O Que É Política?”

Nos últimos dois episódios, estudamos um pouco de Antropologia Política com o objetivo de entender a hierarquia e a igualdade nas sociedades humanas. Estamos tentando examinar por que algumas sociedades apresentam uma igualdade quase completa, onde ninguém está em posição de dominar nenhuma outra pessoa, e onde todos possuem acesso igualitário aos recursos, e até mesmo sentem-se inerentemente merecedores do acesso a esses recursos; e por que outras sociedades – a maioria das sociedades atuais – têm hierarquias de dominação extrema, onde algumas pessoas possuem quase todo o poder de decisão e controle completo sobre todos os recursos, e onde outras pessoas não têm quase nada disso.

Vimos que, em última análise, tudo se resume ao poder de barganha. Onde as condições são de tal maneira que algumas pessoas estejam em posição de dominar outras – que é o caso da maioria das sociedades humanas hoje – e onde essas condições durarem o suficiente, você acaba tendo uma sociedade com hierarquias de dominação e instituições e valores políticos e culturais que reforçam e estabilizam essas hierarquias de dominação. E se as condições são de tal maneira que ninguém esteja em condições de dominar nenhuma outra pessoa, a qual provavelmente era a condição da maioria da humanidade até a era do Holoceno e a disseminação da agricultura, e a qual ainda é a condição de algumas poucas sociedades nômades de caça e coleta de retorno imediato remanescentes hoje, você acaba tendo uma sociedade igualitária e instituições que reforçam e estabilizam a igualdade e a autonomia individual.

Uma perspectiva de Ecologia Comportamental Materialista como essa pode parecer bastante determinista, como se os seres humanos não tivessem escolha a não ser se organizar de certas maneiras em certas condições. As pessoas tendem a pensar que uma perspectiva como essa não deixa espaço para a ação, os valores ou ideias humanas, que faz os seres humanos parecerem robôs. Este é o velho debate entre idealismo e materialismo. Idealismo é a ideia de que nossas estruturas sociais e instituições políticas são o resultado de nossas ideias, valores e cultura, enquanto o materialismo é a ideia de que nossas estruturas sociais, nossas instituições políticas *e* nossa cultura e valores são o resultado de fatores materiais, ambientais e condições práticas. Em termos do século XIX, é a História que faz os homens ou são os homens que fazem a História?

Agora, este não é apenas um debate filosófico esotérico e este podcast não se trata de um espetáculo de pretensão narcisista. O objetivo deste programa é descobrir como podemos nos tornarmos atores políticos eficazes, e a razão pela qual estamos gastando tanto tempo falando sobre o materialismo é porque ele tem aplicações importantes demais no mundo real e porque há consequências tremendamente duras para os atores políticos que não possuem uma compreensão dos incentivos materiais embutidos nos seus sistemas políticos, como veremos hoje e em um outro episódio de perguntas e respostas.

A razão pela qual é absolutamente crucial ter uma boa compreensão de como as condições materiais afetam o comportamento humano é porque isso nos ajuda a prever o comportamento humano – e realizar transformações na política tem tudo a ver com expandir sua coalizão e encontrar os aliados certos. Portanto, especificamente, as perspectivas materialistas nos ajudam a prever e a descobrir coisas como quem tem mais probabilidade de ser um aliado em potencial e quem provavelmente será um inimigo em potencial ou, mais importante, quem provavelmente será um lobo em pele de cordeiro, fingindo ser um aliado. por motivos nefastos – o que examinaremos daqui a pouco quando falarmos sobre a revolta camponesa inglesa de 1381.

Além disso, e igualmente importante, essa perspectiva nos ajuda a tornar-nos mais inteligentes na concepção de boas políticas, boas instituições e sistemas políticos que possam trazer os resultados que realmente queremos – ao invés de leis que apresentem consequências não intencionais, ou que sejam ignoradas e não-aplicadas, ou reformas políticas que sejam revertidas depois de poucas décadas, ou ainda revoluções em que o novo sistema se torna tão ruim quanto os sistemas que substituiu.

Os seres humanos têm agência – o que significa que temos a capacidade de agir e tomar decisões por conta própria com base naquilo que estiver em nossas cabeças e corações. Porém, ao mesmo tempo, pessoas diferentes costumam tomar decisões semelhantes em situações semelhantes. Quanto menos restritiva for a situação, mais espaço haverá para o livre-arbítrio e para as tendências e valores individuais ou culturais se expressarem. No entanto, quanto mais restritivas e extremas as condições se tornam, mais nossas escolhas se tornam previsíveis. E isso inclui quais valores escolhemos abraçar, adotar e passar para nossos filhos, ou quais valores escolhemos herdar ou rejeitar de nossos pais. Se essas condições extremas se repetem com bastante frequência durante um longo período ou tempo, ou se elas permanecem extremas com o passar do tempo, ou você adota certos valores e faz certas escolhas ou você e sua cultura morrem.

Mais uma vez, usarei o exemplo do clima, por ser tão simples. Quando o clima lá fora está amena, você tem a opção de vestir praticamente o que quiser. Um biquíni, um terno, um uniforme de beisebol. Seu arbítrio e suas inclinações têm espaço para se expressar.

Mas se estiver fazendo -30 lá fora, teoricamente você ainda tem a opção de vestir o que quiser, mas se não usar as roupas mais quentes disponíveis, você morrerá. Sua agência é limitada a quais cores você prefere e se quer continuar vivendo ou morrer de frio, e a experimentar para tentar encontrar quais são os materiais e roupas mais quentes possíveis.

Se a sua cultura tiver valores que sejam incompatíveis com essas condições – se você se mudasse para um clima onde sempre faz -30 graus lá fora, e sua cultura valorizasse a nudez acima de tudo (por que deveríamos permanecer o mais próximo possível de como Deus quer que sejamos vistos, por exemplo) – você terá que mudar seus valores e inventar algumas desculpas religiosas para usar roupas de neve completas – e se você não fizer isso, todos os que insistem em se apegar aos valores antigos serão eliminados.

Neste episódio, vamos examinar algumas das diferentes maneiras pelas quais a mudança social acontece – onde as condições materiais deixam espaço para reformar ou eliminar hierarquias de dominação obsoletas, sem que as pessoas tenham percebido isso ainda, de forma que instituições de dominação opressivas desnecessárias permanecem no lugar, até que algum evento torne as pessoas conscientes de que elas não precisam aceitar a ordem atual e então, bum! Se elas souberem o que estão fazendo, e se tiverem sorte, ou ambos – eles pressionam e alcançam a mudança.

Depois, veremos como não ter uma compreensão adequada do seu contexto político, ou das condições materiais e práticas em que sua luta está ocorrendo pode levar ao desastre, mesmo quando as condições materiais estão do seu lado.

Além disso, inversamente, veremos como às vezes as condições materiais são tão avassaladoras que podem simplesmente impulsionar a mudança social por si mesmas, mesmo quando os revolucionários batem cabeça e fracassam.

Assim, vamos examinar a luta das mulheres pelo direito ao voto nos países ocidentais, a luta dos negros estadunidenses pela igualdade jurídica, a massiva revolta dos camponeses ingleses de 1381 e a revolução anarquista na Espanha na década de 1930.

Residência matrilocal

Da última vez, falamos sobre como as regras patrilocais de residência pós-casamento – onde as mulheres que vão se casar deixam sua área natal para ir morar com a família de seus maridos – dão aos homens uma vantagem de poder de barganha em relação às mulheres, e de como isso leva a sociedades dominadas por homens.

Vimos também que as culturas tendem a adotar esse padrão de residência quando estão sujeitas a ataques frequentes, porque ter sua aldeia ou seu grupo de linhagem móvel organizado em torno de homens próximos entre si, que cresceram juntos e que se conhecem bem é bom para a defesa imediata/surpresa.

E como resultado disso, você acaba tendo grupos sociais, onde todos os homens se conhecem desde a infância, mas onde todas as mulheres adultas vêm de aldeias ou linhagens diferentes e, portanto, estão mais isoladas socialmente, e que isso dá aos homens uma vantagem de poder de barganha em qualquer conflito, o que leva ao domínio masculino. Portanto, se houver um conflito entre um homem e uma mulher, o homem provavelmente terá toda a aldeia do seu lado, e a mulher dificilmente terá alguém. Como vimos, com o tempo, isso leva à ideologia patriarcal. E, se a economia não exigir que as mulheres trabalhem juntas em grupos, onde possam formar vínculos e coalizões com as quais possam defender seus interesses, isso levará ao patriarcado extremo.

Existe também o padrão de residência matrilocal pós-casamento, que é a segunda regra mais comum entre os seis tipos de regras existentes que mencionamos no último episódio. Cerca de 13% das sociedades praticam a residência matrilocal, contra 69% que praticam a residência patrilocal. O tipo de padrão de casamento que temos no Ocidente industrializado – onde o casal vai morar onde quiser – foi praticado por apenas 8% das sociedades, o que também inclui os caçadores-coletores hiperigualitários de que falamos na última vez.

De qualquer forma, as culturas adotarão uma regra de residência matrilocal quando a economia envolver muita caça, pesca ou guerras e invasões em longa distância – que envolvam os homens saindo para longas expedições por períodos extensos, meses a fio. Como os homens estão ausentes por períodos prolongados, são as mulheres que devem tomar conta das coisas como administração das terras, política, agricultura e outros assuntos da aldeia. Portanto, faz sentido organizar as aldeias em torno de mulheres que cresceram juntas e se conhecem bem. Dessa forma, elas terão menos conflitos e resolverão melhor as divergências quando se tratar de decisões envolvendo a gestão das terras e a política da aldeia, em vez de aldeias compostas por mulheres que não se conhecem bem e que vêm de linhagens diferentes, que é o caso nas sociedades patrilocais.

Só que as pessoas não fazem as coisas apenas porque fazem sentido – há também a realidade do poder de barganha envolvido. Sempre que alguém disser algo como “esta sociedade escolhe isso ou aquilo”, tenha em mente que é extremamente raro para uma sociedade como um todo escolher algo em uníssono. Dizer que “a sociedade escolhe” isso ou aquilo significa que alguns membros da sociedade conseguiram o que queriam versus outras pessoas que provavelmente não queriam aquela coisa específica, porque diferentes pessoas têm interesses materiais e psicológicos diferentes, e diferentes classes de pessoas possuem diferentes interesses de classe.

No terceiro episódio, analisamos uma situação hipotética em que você poderia ter um sistema de saúde gratuito e mágico para todos, com os melhores médicos e os melhores cuidados possíveis, apenas dizendo alguma palavra mágica, “mekalekahimekahinihô”. Ainda que fosse o melhor sistema de saúde imaginável no universo, haveria uma pequena classe de pessoas que possuem muitas ações de empresas de convênios médicos que sairiam perdendo – e que seriam contra esse sistema. E se essa minúscula classe fosse poderosa o suficiente, conseguiriam manter o lixo de sistema existente, mesmo que isso fosse terrível para 99,9% da população.

Assim, embora faça mais sentido adotar a residência matrilocal quando os homens estão ausentes por longos períodos, todavia, ao mesmo tempo, ter as aldeias baseadas em mulheres aparentadas tira algum poder dos homens – e as pessoas geralmente não abrem mão do poder quando não são obrigadas a isso. Portanto, poderíamos esperar que os homens resistam a esse tipo de organização.

Porém, o fato dos homens estarem ausentes com tanta frequência e por tanto tempo dá às mulheres o aumento no seu poder de barganha necessário para insistir e impor esse tipo de regra de residência pós-casamento aos homens, quer eles queiram ou não.

Portanto, as pessoas fazem escolhas e se envolvem ativamente em lutas, mas as condições ajudarão a decidir quem será o vencedor dessas lutas e como será a ordem social resultante delas. E isso é mais verdadeiro quanto mais restritivas forem as condições.

Para que uma sociedade possa prosperar, ela precisa de estabilidade, então a cultura e os valores passarão a refletir e estabilizar o equilíbrio de poder de longo prazo de uma sociedade e manter a sua coesão.

Por exemplo, entre as pessoas da confederação Haudenosaunee na América do Norte, também conhecidas como iroqueses, que são tradicionalmente matrilocais e matrilineares, as mulheres são extremamente respeitadas.

Ao contrário do Ocidente, onde pesquisas mostram que homens de todas as idades consideram as mulheres de 22 anos as mais atraentes, ou do Japão, onde a idade ideal de atratividade física para as mulheres vem caindo ao longo dos anos, de 20 e poucos anos até o Ensino Médio (ou mesmo últimos anos do Ensino Fundamental), as mulheres nas culturas Haudenosaunee são consideradas mais atraentes entre o final dos 30 anos e 40 anos, da mesma maneira como os homens dessa idade são considerados muito atraentes nas sociedades ocidentais.

E isso faz sentido, porque as mulheres dessa idade estavam no auge em termos de influência e poder político, assim como os homens dessa idade tendem a ser mais ricos em nossa sociedade – então, ao se casar com alguém nessa posição, você ganha uma melhor configuração para seus filhos e sua vida familiar.

É muito comum ouvir pessoas que vêm das 6 nações dizerem que não havia agressão sexual ou estupro na sociedade tradicional Haudenosaunee, e mesmo se isso estiver exatamente correto ou não, é certamente muito provável que esses eventos fossem extremamente raros.

Não apenas devido aos seus valores, mas também por causa da realidade prática de que qualquer homem que fizesse algo assim seria condenado ao ostracismo por toda a aldeia e deixado sozinho para morrer – uma sociedade onde as mulheres lideram a família e a vida política, e onde as aldeias são constituídas por mulheres aparentadas que se conhecem desde a infância não aceita a agressão sexual numa boa. Portanto, faz sentido que os indivíduos adotem esses valores, para que possam aproveitar sua vida social.

As pessoas que não gostam de explicações materiais para a cultura e a Política sempre argumentam que essa ideia de adaptação da cultura à realidade material seria uma coisa mística, que ninguém conseguiria explicar – as pessoas não apenas se adaptam magicamente às coisas, nós fazemos escolhas. E sim, nós fazemos escolhas, mas, novamente, independentemente dos nossos sentimentos e valores, nossas escolhas se tornam cada vez mais previsíveis quanto mais restritivas as condições se tornam. E uma dessas escolhas são os valores culturais que escolhemos adotar.

Em seu importantíssimo livro A estrutura das revoluções científicas, Thomas Kuhn observou que as teorias e a visão de mundo dos cientistas mais velhos, estabelecidos a mais tempo, dominam os seus campos científicos – e que mesmo quando novas evidências demonstram que suas teorias favoritas estão erradas, eles ainda seguem apegados a elas. Essas teorias refutadas continuam dominando a área, até que os cientistas mais velhos se aposentem, e que os cientistas mais jovens que surgiram enquanto as velhas teorias estavam sendo refutadas comecem a assumir.

E também é assim que a cultura funciona. Imagine que você tenha uma cultura patriarcal em que os homens tendem a ter atitudes muito misóginas em relação às mulheres. E então eles acabam mudando para um novo ambiente onde agora têm que adotar uma economia que envolve caça e invasão de longa distância, e onde as mulheres por necessidade ficam na aldeia e passam a operar a vida política. Então, começa um debate sobre a mudança para a residência matrilocal ao invés de patrilocal, e as mulheres vencem porque elas estão em vantagem.

Bem, os homens mais velhos podem ainda ter suas ideias misóginas, mas agora as mulheres possuem o poder de tornar suas vidas um inferno se eles as tratarem com desrespeito. E o mesmo com os jovens que estão crescendo, que conseguem ver que as atitudes de seus pais estão fora de sintonia com a realidade e que eles parecem antiquados e tolos. Além disso, suas mães, que agora estão em uma posição forte, não continuarão transmitindo valores patriarcais para seus filhos, então as crianças crescendo têm valores concorrentes entre os quais escolher, e tenderão a escolher aqueles que fazem mais sentido.  Darei um exemplo engraçado dessa situação na minha família em um próximo episódio de perguntas e respostas.

Curiosamente, a residência matrilocal não parece levar ao mesmo grau de dominação feminina que os homens acabam tendo sobre as mulheres nas sociedades patriarcais – por exemplo, as mulheres geralmente não monopolizam por completo todas as posições de autoridade, como fazem os homens em muitas sociedades patriarcais, e elas não subjugam os homens para que façam todo o trabalho sujo para elas enquanto elas passam o tempo com suas amigas, que é algo que vemos em culturas extremamente patriarcais.

Então, por exemplo, entre os povos da confederação Haudenosaunee (ou Iroqueses) na América do Norte, tradicionalmente havia um sistema onde a mulher mais velha de cada clã era a mãe do clã e a autoridade máxima daquele clã, mas onde as mães dos clãs juntas elegiam o chefe, que sempre era um homem, mas que poderia ser removido ou vetado pelas mães dos clãs unidas entre si.

Meu palpite de por que era dessa maneira é que os homens geralmente dominam a guerra e as batalhas físicas, então isso tende a dar a eles maior poder de barganha do que as mulheres geralmente possuem em sociedades patrilocais, onde elas podem ser fisicamente subjugadas pela coalizão de homens, além de estarem socialmente isoladas pela residência patrilocal.

No futuro, falaremos mais sobre a Confederação Haudenosaunee, que era um sistema surpreendentemente igualitário para uma grande sociedade agrícola sedentária.

Sufrágio feminino

O ponto é que a residência matrilocal e o aumento dos direitos e do poder das mulheres é outro exemplo de estrutura social sendo determinada por condições materiais. O fato dos homens ficarem distantes por longos períodos fornece às mulheres mais poder de barganha, o que leva a mais direitos para as mulheres.

Novamente, as pessoas possuem agência, mas também tendem a fazer escolhas racionais e um tanto previsíveis a longo prazo.

Hoje, nas sociedades industrializadas ocidentais, podemos ver algo que, à primeira vista, parece ser uma dinâmica semelhante em ação quando observamos a maneira como as mulheres obtiveram o direito ao voto. No entanto, quando olhamos mais de perto, vemos algo bem diferente acontecendo.

Se você for à Wikipedia e procurar por sufrágio feminino, encontrará uma lista de datas quando as mulheres conquistaram o direito de voto em diferentes países, e perceberá que, para a Europa e a América do Norte, todas giram em torno do final da Primeira ou da Segunda Guerra Mundial.

A história de como as mulheres conquistaram o direito ao voto é diferente em cada país, mas o fato disso acontecer em todos esses países na época das grandes guerras mundiais não é coincidência.

Assim como os Haudenosaunee, onde as mulheres tinham maior poder de barganha porque os homens estavam ausentes realizando invasões ou caçando, na Primeira e na Segunda Guerra Mundial as mulheres obtiveram mais poder de barganha porque os homens em idade ativa estavam ausentes por longos períodos e as mulheres foram necessárias para substituí-los como trabalhadoras. No entanto, as mulheres na Europa e na América do Norte conseguiram o direito ao voto depois que a guerra acabou, quando as condições materiais voltaram ao normal. Os homens estavam de volta à aldeia permanentemente, por assim dizer. Portanto, uma mudança nas condições materiais não explica de verdade o que aconteceu.

Nesse caso, especialmente na Inglaterra, Canadá e Estados Unidos, a mudança nos direitos das mulheres foi em grande parte resultado de uma mudança de consciência entre as mulheres, mas também entre os homens, para alcançar as mudanças nas condições que já haviam ocorrido anteriormente. Foi a alteração temporária nas condições, onde as mulheres assumiram a força de trabalho, que serviu como catalisador para mudar a sua consciência – como quando as pessoas às vezes decidem largar seu odiado emprego ou deixar um relacionamento abusivo depois de férias ou de um tempo longe de seu cônjuge que os faz perceber que não precisam mais aturar aquela porcaria.

Nesse caso, as condições materiais que davam às mulheres o poder de barganha necessário para que elas conquistassem o direito de voto já existiam há algum tempo, mas as pessoas ainda não tinham se dado conta disso, então elas não estavam dispostas a trabalhar por essa transformação. No entanto, as consciências foram transformadas com a experiência da guerra, e essa mudança transformou o poder de barganha latente em poder de barganha ativado.

As mulheres são mais de 50% da população. Além disso, ao contrário de outras sociedades como os Lese, sobre os quais falamos no último episódio, em que as mulheres estão fisicamente isoladas umas das outras, as mulheres na América do Norte tinham a capacidade de se reunir, especialmente com o aumento da urbanização.

Portanto, inerentemente  elas já tinham um enorme poder de barganha e, se quisessem, poderiam até ter exigido a colocação obrigatória de refrigerantes nos bebedouros. Sem que elas soubessem, elas já tinham esse poder nos centros urbanos há décadas, e nas áreas rurais elas estavam obtendo esse poder cada vez mais, à medida que o telefone se tornava mais acessível e mais comum.

Mas, para ativar esse poder de barganha latente, elas precisavam saber que tinham esse poder, precisavam ter um objetivo comum, precisavam ser capazes de fazer alianças com outras mulheres e daí precisavam saber como efetivamente fazer pressão por essas metas.

Em termos de um objetivo unificado, a maioria das mulheres em geral desejava o direito de voto – e o desejava há décadas. No entanto, mesmo que existissem organizações sufragistas desde a década de 1870, as mulheres não se juntavam a essas organizações em número suficiente. Muitas mulheres não achavam que essa fosse uma meta realista ou achavam que não valia a pena investir muito tempo e energia nisso. Outras não achavam que mereciam esse direito.

Entretanto, uma vez que as mulheres entraram na força de trabalho, várias coisas aconteceram. Uma delas é que as mulheres começaram a se sentir mais merecedoras de direitos iguais de voto, pois entenderam que a guerra não poderia ter sido vencida sem elas. Outra é que a mística do trabalho masculino foi estilhaçada. Agora, um marido poderia tentar obter o que queria em algum desentendimento, invocando o argumento de que “eu trabalho duro o dia inteiro e mimimi”, ao que a mulher agora poderia responder “eu fiz tudo o que você faz por quatro anos e também vinha para a casa e cuidava das crianças e também tomava conta da nossa casa, então não pense que você é uma espécie de mártir só por ir trabalhar”.

Crucialmente, o fato de estarem na força de trabalho uniu as mulheres de uma forma que não acontecia quando elas estavam mais isoladas em casa cuidando dos filhos. Assim, as elas puderam conversar umas com as outras e compartilhar suas experiências com outras pessoas em grande número nos intervalos do almoço, depois do trabalho, a qualquer hora. E elas compartilharam suas queixas e ideias, e perceberam que havia toda uma nação de outras mulheres pensando as mesmas coisas e tendo as mesmas necessidades e desejos, e dessa maneira elas se tornaram mais conscientes de seu poder de barganha e de que constituíam uma força política. Assim, elas ganharam um senso de direito e também um senso do seu próprio poder.

Havia também a ideia de que, se as mulheres tivessem o direito de votar desde o início, talvez a insanidade da Primeira Guerra Mundial pudesse ter sido evitada por completo. Portanto, havia um argumento novo e tangível de por que suas vozes eram cruciais.

De repente, as organizações de sufragistas começaram a aumentar rapidamente em números e adesão, à medida que as mulheres começaram a se mobilizar pelo direito ao voto e a se juntar às organizações e movimentos. E agora as organizadoras experientes tinham os números de que precisavam para exercer pressão efetiva sobre os políticos e outras pessoas influentes, e mais gente significava ideias mais criativas sobre como aplicar pressão e ganhar influência.

E elas fizeram isso por meio do espectro completo de táticas de pressão e de relações públicas, do tradicional lobby até piquetes, desfiles, reuniões de massa, cartazes, festas, propagandas, greves de fome e desobediência civil, visando a todos, desde seus maridos até membros individuais do congresso ou parlamento, ou gerando publicidade ao serem presas por fazer piquetes ou por seguir o presidente ou primeiros-ministros. As sufragistas estadunidenses também faziam questão de apontar como os EUA estavam “lutando pela democracia” no exterior ao mesmo tempo em que mantinham as mulheres privadas de direitos em casa.

E historicamente, observamos repetidas vezes que as classes mais baixas na sociedade se levantam efetivamente quando possuem grandes redes de contatos e conseguem formar coalizões capazes de afirmar sua vontade e defender seus interesses. Como no exemplo [negativo] dos escravos nos Estados Unidos, que raramente conseguiam realizar rebeliões de escravos bem-sucedidas – as revoltas dos escravos nos EUA tendiam a ser isoladas a um proprietário ou plantação e a envolver alguma violência contra os mestres; em seguida, todos os escravos eram mortos pelas autoridades.

Enquanto isso, no Haiti (que na época se chamava Saint-Domingue), os escravos conseguiram derrubar todo o governo e assumir o controle da ilha. A grande diferença era que os escravos nos Estados Unidos estavam muito mais isolados em pequenos grupos controlados por proprietários, famílias ou plantações individuais que controlavam suas atividades sociais e suas idas e vindas. Enquanto isso, em Saint-Domingue, os escravos trabalhavam até a morte em plantações gigantes, mas conseguiam se reunir à noite em sociedades de rituais que tinham redes de contatos por todo o país. E foi por meio dessas redes que os escravos puderam entender seus opositores, o sistema, o que acontecia em diferentes partes do país, e onde puderam criar laços e solidariedade uns com os outros – tudo o que você precisa para efetivamente realizar uma transformação.

As sufragistas tendiam a ser mais ricas em termos de renda, já que as pessoas com menos dinheiro geralmente não estão tão interessadas em eleições em democracias representativas se não estiverem investidas no sistema por meio de serviços sociais, que em sua maioria não existiam naquela época. Mas como as mulheres de classe alta têm redes sociais mais poderosas, seu poder era desproporcional aos seus números.

Outro fator importante que aumentou a consciência no Canadá, nos Estados Unidos e no Reino Unido foi o fato de que as mulheres estavam obtendo o direito de voto nas novas nações criadas após a Primeira Guerra Mundial, como na Áustria e na Hungria. Isso dava às mulheres um senso de que elas mereciam isso e também ajudava a chamar a atenção da mídia para essa questão específica.

A razão pela qual as mulheres nesses países recém-formados obtiveram o direito de voto foi semelhante ao que aconteceu nos países anglófonos, mas havia um bônus adicional que facilitou o trabalho delas – quando você está começando do zero, é mais fácil opinar sobre como um novo sistema político deve funcionar, ao contrário de quando você já tem um sistema político estabelecido, com uma hierarquia entrincheirada e uma constituição extremamente difícil de se lidar, como no caso notório dos EUA, por exemplo.

Tanto nos países anglófonos como em todos os outros lugares, não foi só a consciência das mulheres que foi elevada. Um número crescente de homens e políticos  – que, no fim das contas, eram os que tinham o poder de votar para transformar em lei o sufrágio feminino – passaram a reconhecer as contribuições que as mulheres fizeram durante a guerra, a reconhecer o fato de que as mulheres poderiam realizar todos os mesmos trabalhos que os homens, e que elas tinham todas as mesmas habilidades que os homens. Esses fatos foram trazidos à sua atenção pelos esforços de organização das mulheres e pelas notícias do direito de voto sendo conquistado por mulheres em nações recém-formadas.

A maioria das mulheres que ainda não tinham obtido direitos totais de voto após a Primeira Guerra Mundial os obtiveram após a Segunda Guerra Mundial pelas mesmas razões sobre as quais acabamos de falar. Em todos os novos países comunistas que ainda não tinham o direito ao voto, as mulheres o obtiveram porque os líderes comunistas faziam do voto inclusivo parte de sua razão de ser – e, ironicamente, em Estados de partido único, onde geralmente não há apostas muito grandes nas eleições, a inclusão de grupos anteriormente marginalizados ou oprimidos é uma forma de obter legitimidade do maior número de pessoas, ao contrário de Estados multipartidários onde grupos de elite muitas vezes tentam ciosamente impedir as pessoas de votar para preservar suas vantagens.

Agora, se você olhar para a página da wikipédia, notará que, enquanto as mulheres conquistaram o direito de votar em todos os outros lugares da Europa na Primeira e na Segunda Guerra Mundial, as mulheres na Suíça só obtiveram direito total de voto em 1971! Não é coincidência o fato de que a Suíça não lutou na Primeira ou na Segunda Guerra Mundial. Se você ler artigos acadêmicos sobre esse tema, a emancipação tardia das mulheres suíças geralmente é atribuída a coisas como divisões de classe no movimento de mulheres e falta de apoio dos partidos políticos, mas esses mesmos fatores foram superados em outros países. O fato é que as mulheres suíças simplesmente não tiveram as mesmas experiências ou as mesmas redes sociais expandidas que as mulheres de outros países onde elas tiveram que substituir os homens nos locais de trabalho, então elas simplesmente não lutaram com a mesma intensidade pelos seus direitos. Não foi até a época da revolução sexual catalisada pela disponibilidade de controle de natalidade, que estava visível para todo mundo através da mídia de massa que agora chegava nas casas de todos, que um número suficiente de mulheres suíças finalmente foram motivadas o bastante para conquistar plenos direitos de voto.

Nos países escandinavos, que em grande parte eram economias agrícolas, o trabalho das mulheres não era tão obviamente segregado do trabalho dos homens, então a importância do seu trabalho e a igualdade de importância do seu trabalho para o dos homens estavam mais óbvias tanto para as mulheres quanto para os homens. E também havia uma maior tradição socialista que defendia a igualdade de gênero desde meados do século XIX. Portanto, embora a Suécia tenha sido neutra na Primeira Guerra Mundial, o sucesso dos movimentos sufragistas nos países vizinhos que lutaram na guerra foi suficiente para motivar as mulheres suecas a lutar pelo direito de voto, pois elas já tinham um alto grau de auto-estima e de poder de barganha, para início de conversa.

Direitos civis dos negros

A história é parecida para o movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, que não coincidentemente emergiu com força muito maior após a Segunda Guerra Mundial. Na Primeira Guerra Mundial e nas guerras anteriores, os soldados negros eram principalmente tropas de apoio, que faziam trabalhos braçais, com alguns batalhões excepcionais compostos por negros. Na Segunda Guerra Mundial, porém, devido à maior necessidade de tropas, os estadunidenses negros foram convocados junto com todos os outros. 1,2 milhão de homens negros foram para a Europa como soldados, especialistas e às vezes oficiais, para lutar e morrer em uma guerra contra o racismo e o genocídio, apenas para retornar depois para o mesmo racismo, discriminação e exploração em casa. A hipocrisia era fedorentamente óbvia e gritante.

Enquanto isso, no fronte doméstico, homens e mulheres negros, assim como mulheres brancas, entraram em novas profissões e mercados de trabalho enquanto a guerra criava uma enorme escassez de mão de obra. Portanto, naquele momento homens e mulheres negros estavam trabalhando em empregos melhores, ingressando em sindicatos, obtendo acesso a habilidades e treinamento mais avançados e trabalhando em melhores condições do que anteriormente estava disponível para eles.

A exposição a melhores condições, maior poder de barganha e a hipocrisia da retórica democrática do esforço de guerra do governo dos EUA versus a realidade da cidadania de segunda classe em casa levaram a uma maior consciência, confiança, sentimento de merecimento, redes sociais e propósito unificado. E assim surgiu o movimento do “Duplo V”, onde os negros lutavam pela vitória contra o fascismo e o racismo no exterior, e em casa.

E, como as sufragistas, eles empregaram todas as táticas de pressão e de relações públicas disponíveis a eles.

A mobilização e o ativismo energizados de soldados e veteranos negros, e de suas organizações levaram o presidente Truman a aprovar decretos para acabar com a discriminação nos empregos do departamento de defesa, mas foram necessárias batalhas muito mais longas para obter direitos civis legais plenos no resto da economia e do país, especialmente nos estados do sul, onde o racismo estava tão profundamente enraizado na identidade cultural e na economia.

Outro fator pelo qual a igualdade jurídica negra foi uma batalha mais difícil do que a igualdade jurídica feminina foi o simples fato de que a maioria dos brancos (que eram majoritários na população) não foi exposta às lutas dos negros nem estava sujeita à pressão dos negros da mesma forma que os homens estavam expostos às queixas e táticas de pressão das mulheres.

Enquanto quase todos os homens tinham um relacionamento próximo com pelo menos uma ou duas mulheres diferentes como mães, irmãs e esposas, muito menos brancos tinham relacionamentos com pessoas negras, exceto alguns soldados, e em alguns locais de trabalho que haviam integrado negros recentemente e temporariamente em tempos de guerra, então a consciência branca era muito mais lenta para a mudança do que a consciência masculina em relação aos direitos das mulheres. Não é por acaso que o apoio aos direitos dos negros era maior entre os militares, onde os soldados negros ganhavam reputação de serem corajosos e capazes, conquistando o respeito de seus irmãos brancos, que às vezes se juntavam a eles em suas ações de protesto.

A revolta camponesa de 1381

Portanto, o movimento pelos direitos civis dos negros e pelo sufrágio feminino são exemplos em que mudanças na consciência, ao invés de mudanças nas condições materiais, alteraram o equilíbrio de poder e possibilitaram que pessoas em posições subordinadas lutassem com sucesso por mais direitos e mais poder.

Nesses casos, uma mudança de consciência foi o suficiente para fazer uma grande diferença, porque o poder de barganha desses grupos já existia, eles apenas não o estavam utilizando – ainda não haviam descoberto que eles possuíam esse poder ou como utilizá-lo. Quando as realidades materiais mudam e abrem oportunidades para aumentar o poder de barganha dos grupos subordinados, as Elites se agarram ao poder e formam suas próprias coalizões e fazem o que puderem para garantir que as pessoas abaixo delas não comecem a se conectar umas com as outras para reconhecer e ativar seu poder de barganha.

É como quando seu chefe não deixa você saber quanto seus colegas de trabalho estão recebendo – ou quando um proprietário estúpido tenta ordenar que seus inquilinos parem de se falar quando eles se reúnem para defender seus direitos, o que eu já vi um zilhão vezes no meu trabalho!

Uma elite devidamente organizada fará tudo o que puder para garantir que a população nunca tenha qualquer senso de seu próprio poder ou de merecimento de um direito. “Os mantenha distraídos, divididos, etc, de todas as maneiras” – existem estilos e maneiras liberais e conservadoras de fazer isso, como veremos no futuro.

A menos que as mudanças nas condições estejam esmagadoramente ao seu favor e flagrantemente óbvias, aumentar a consciência e ter conhecimento sobre as condições e sobre coisas como os incentivos materiais inerentes ao seu sistema político é a chave para realizar a transformação social. Você precisa entender essas coisas para saber quem são seus aliados em potencial, em quem confiar, com quem manter o ceticismo e como lutar contra a oposição.

Um exemplo espetacular de como as condições materiais afetam o poder de barganha e de porque o conhecimento e a consciência política serem fundamentais para capitalizar esse poder de barganha é a revolta dos camponeses ingleses de 1381.

Quando o império romano ocidental veio abaixo no século 5, surgiram senhores da guerra que juntavam riquezas pilhando camponeses locais que já não tinham nenhum Império Romano por perto para manter a ordem. Isso dava aos senhores da guerra um enorme poder de barganha sobre os agricultores, aos quais eles podiam oferecer “proteção” contra a pilhagem dos senhores da guerra concorrentes – ou de si mesmos, em troca de ⅓ ou mais da sua colheita – mais ou menos como a máfia. Com o tempo, os senhores da guerra tornaram-se simplesmente senhores feudais, e os agricultores tornaram-se servos.

Eventualmente, surgiram reis que unificaram territórios maiores, impondo a paz entre senhores concorrentes. Com os monarcas tendo em grande parte eliminado o risco de ataques entre senhores rivais e a pilhagem que os acompanhava, poderia-se pensar que a justificativa para os camponeses pagarem ⅓ ou mais de sua produção aos senhores havia desaparecido – mas quem pensasse isso estaria errado – uma das maneiras pelas quais os reis consolidaram seu poder, foi oferecendo à nobreza proteção contra a rebelião de seus servos.

Assim, os Estados que esses reis criavam tinham como função principal manter a si mesmos e à elite nobre no poder, o que significava manter os grãos dos servos fluindo para as mansões senhoriais.

Ao mesmo tempo, os reis também alavancavam o apoio popular a fim de manter a nobreza sob controle – porque, como qualquer pessoa, a nobreza também não gosta de ter alguém governando acima deles. Portanto, havia uma abordagem do tipo “cenoura e bastão” – enquanto os monarcas angariavam o apoio da nobreza ajudando a impor o poder dela sobre seus servos, eles também angariavam apoio da população ao proteger os servos contra os excessos e decisões arbitrárias de seus senhores, conquistando assim uma certa medida de legitimidade popular.

Assim, por exemplo, na Inglaterra, os senhores faziam a lei e mantinham em operação os seus próprios tribunais, o que significava que os servos nunca podiam obter justiça se tivessem uma disputa contra seus senhores – cara eu ganho coroa você perde. No entanto, tão logo os reis foram estabelecidos, eles passaram a operar tribunais chamados de assentos do rei, que viajavam pelo país e ouviam apelações em casos decididos pelos tribunais dos senhores – e assim às vezes os servos podiam obter alguma justiça.

Enquanto isso, o rei também era sustentado pela doutrinação religiosa da igreja – que, por sua vez, era sustentada pelo rei. Portanto, as pessoas acreditavam que o rei era nomeado por deus e que ele se importava com elas, e se elas ficavam bravas com as autoridades, geralmente era contra as autoridades locais – contra o senhor, cujo punho era facilmente visível em comparação com o punho oculto do rei que apoiando o senhor nos bastidores.

É um pouco como hoje, quando você tem um local de trabalho capitalista, com um proprietário e gerentes. Frequentemente são os gerentes que fazem todos os abusos e que têm todas as interações coercitivas com os trabalhadores, enquanto o proprietário age como um líder benevolente acima das nuvens, sempre tendo uma interação muito amigável com os trabalhadores nas poucas vezes em que interage com eles. Como resultado, os proprietários geralmente possuem uma reputação muito melhor entre os trabalhadores do que seus gerentes diretos, mesmo que seja o proprietário quem manda os gerentes abusarem dos trabalhadores. Na política dos EUA, os republicanos agem como proprietários e os democratas agem como gerentes.

E assim a servidão se arrastou por centenas de anos, e a tendência era que os senhores extraíssem da classe dos servos cada vez mais excedentes ao longo do tempo – mas – então a peste negra chega à Inglaterra em 1348-49 e novamente em 1362-1369 – e mata entre 40% e 60% da população, desproporcionalmente servos.

Esse pesadelo horripilante torna-se numa bênção parcial para os servos sobreviventes, bem como para os trabalhadores urbanos, pois muda radicalmente o equilíbrio de poder entre servos e nobres, da mesma maneira em que uma escassez de mão-de-obra altera o equilíbrio de poder entre empregados e empregadores.

De repente, muitos senhores não tinham servos o bastante para mantê-los nas riquezas a que estavam acostumados e passaram a tentar furtivamente roubar servos de outros senhores oferecendo-lhes melhores condições, mesmo que isso fosse ilegal e considerado escandaloso.

Pela primeira vez os servos estavam em condições de exigir melhores condições de seus próprios senhores – e eles insistiam em pagar uma parte menor de suas colheitas aos seus senhores, exigiam salários mais altos para trabalhos secundários e insistiam pelo direito de realizar trabalhos qualificados mais bem pagos que eles normalmente eram proibidos de fazer. Além disso, eles queriam pagar menos nas várias taxas que eram obrigados a pagar as várias figuras de autoridade. Assim como nas raras oportunidades de escassez de mão de obra no capitalismo, se seu senhor não lhe desse melhores termos e condições, você poderia simplesmente pegar suas coisas e ir trabalhar para um empregador melhor.

Na década de 1380, o poder de compra dos trabalhadores rurais havia aumentado cerca de 40%, às custas da nobreza – e é claro que a nobreza estava perdendo o sono com isso. Eles tentaram em vão reafirmar seu poder de barganha usando o poder do Estado para impor leis que tentavam fixar os salários nos níveis anteriores à peste; tornaram crime recusar um trabalho ou quebrar um contrato existente e impuseram a marcação a ferro e a prisão como penalidades. O Parlamento promulgou leis suntuárias para impedir que os servos comprassem e usassem mercadorias caras que antes eram acessíveis apenas pela nobreza, e fizeram leis para impedir que os servos mandassem seus filhos para a escola.

Porém, apesar desses esforços, as condições materiais – ou seja, a escassez de mão-de-obra – eram tais que as leis só podiam ser aplicadas apenas até certo ponto e o progresso dos servos só podia ser retardado parcialmente. Os senhores precisavam de trabalhadores e temiam que eles lhes escapassem, então eles continuavam tentando aliciá-los para que ficassem.

A crescente força dos servos trouxe consigo expectativas e uma sensação de que eles mereciam mais, e um ressentimento crescente de que as leis estavam sendo usadas para impedir que eles alcançassem o que lhes era devido. Era um pouco o oposto de hoje, onde os empregadores se ressentem do fato de que o Estado artificialmente fornece aos trabalhadores mais poder de barganha do que eles teriam, por meio de algumas proteções na forma de salários mínimos e outros direitos trabalhistas – direitos que os empregadores poderiam facilmente negligenciar com base em sua enorme vantagem de poder de barganha na esfera privada. No século 14, os servos se ressentiam com o fato de o Estado impulsionava artificialmente a elite – o que o Estado também realiza hoje, mas as pessoas não percebem, então elas não ficam tão chateadas com isso!

Portanto, a mudança nas condições materiais estava nítida e isso mudou a consciência. Logo, novas ideias radicais começaram a se espalhar sobre como a nobreza era uma classe inútil e parasitária.

“Quando Adão cavava e Eva fiava, quem na época era o senhor feudal?” era o famoso slogan de John Ball, que era o mais proeminente de uma nova geração de padres radicais. E com essa frase ele queria dizer que não havia nobreza nos tempos bíblicos, que Deus não a criou, então por que deveria haver no presente?

Desde o princípio, todos os homens foram criados semelhantes por natureza, e nossa escravidão ou servidão surgiu pela opressão injusta de homens perversos. Pois se Deus quisesse que houvesse servos desde o princípio, ele teria designado quem deveria ser servo e quem deveria ser livre. E, portanto, exorto-vos a considerar que agora é chegado o tempo, designado a nós por Deus, no qual podeis (se quiserdes) rejeitar o jugo da servidão e recuperar a liberdade”.

E como em tantas revoltas e revoluções, a ideia de liberdade estava intimamente vinculada à noção de igualdade, porque só quando as pessoas possuem igualdade material e igualdade política é que ninguém está em posição de dominar ninguém, que é a pré-condição necessária para a liberdade.

“Meus bons amigos”, começava outro dos famosos sermões do Padre Balls, “as coisas não podem ir bem na Inglaterra, nem nunca irão, até que todas as coisas sejam mantidas em comum, quando não houver nem vassalos nem senhores feudais, quando os senhores não forem mais mestres do que nós mesmos.”

E por 30 anos padres como John Ball e outros radicais fizeram agitação, organização e criaram conexões entre servos e pessoas nas cidades, espalhando ideias sobre eleger representantes e tudo isso ressoou entre os camponeses que sentiam o declínio do poder da nobreza – e cresceu a ideia de que, se as pessoas agissem, elas poderiam retornar ao mundo sem classes que Deus havia criado.

Assim, as condições em transformação geraram mudanças nas consciências, que as pessoas usaram para se organizar e para mudar ainda mais as consciências, com o objetivo de transformar a sociedade e eliminar completamente a classe nobre e estabelecer a Inglaterra como uma federação de comunas independentes.

Basicamente, se tratava pura e simplesmente de um movimento socialismo-libertário cristão fermentando quase 500 anos antes de Karl Marx ou Mikhail Bakunin.

Finalmente, depois de décadas de pessoas sendo presas, marcadas à ferro e queimadas, e conforme crescia o ressentimento crescia depois de sucessivas rodadas de novos impostos sendo promulgadas pelo parlamento para pagar pela Guerra dos Cem Anos com a França, em 1381 a Inglaterra explodiu em rebelião, com camponeses, artesãos e funcionários públicos rurais se revoltando contra a nobreza e o governo.

Só que, ao contrário de outras revoltas camponesas que irromperam pela Europa em diferentes épocas, essa estava organizada. Os rebeldes sabiam exatamente o que queriam e como queriam – o fim da servidão, o fim dos privilégios da nobreza, se livrar de onerosos impostos de guerra e de guerras idiotas, o fim dos salários máximos e de outras leis que reforçavam artificialmente as distinções de classe, a deposição dos altos funcionários do rei e seus tribunais e o estabelecimento de uma nação de comunas independentes. E assim, eles foram de cidade em cidade atacando alvos claramente pré-estabelecidos com o objetivo de atingir esses objetivos.

Eles visavam os temidos e odiados registros senhoriais que listavam os crimes que as pessoas haviam cometido e quanto elas deviam em impostos, e foram de cidade em cidade, queimando registros, abrindo prisões e matando figuras odiadas, cobradores de impostos, funcionários governamentais específicos, clérigos e nobres.

E, finalmente, um exército de 140.000 camponeses marchou até Londres. Com os exércitos do rei em sua maioria travando a guerra na França, os camponeses estavam preparados para facilmente tomar a torre de Londres e depor o rei Ricardo II, que tinha apenas 14 anos na época.

Porém, por mais inteligente e organizada que fosse a rebelião, os rebeldes camponeses não entendiam a natureza e a dinâmica do sistema político que os mantinha subjugados.

Ingenuamente, acreditavam que o rei era seu protetor designado por Deus, e que a classe nobre sozinha era a causa de sua opressão, e não entendiam como o rei agia junto da nobreza para manter os servos trabalhando sob o domínio da classe dominante.

O slogan deles era “Pelo rei Ricardo e pela verdadeira comunidade”. O rei fora nomeado por Deus e eles queriam um relacionamento direto com ele, sem a nobreza corrupta e o alto clero no meio do caminho. Era um pouco como os democratas nos EUA viam Barack Obama ou como os republicanos viam Donald Trump. “Ele é o mocinho, são todas aquelas pessoas corruptas em torno dele que estragam tudo para nós”.

Felizmente para a classe dominante, os conselheiros do rei entendiam muito bem como seu sistema político funcionava e perceberam que poderiam se beneficiar da ignorância dos camponeses.

A, assim, eles fizeram o rei sair e fingir que ele realmente estava do lado dos camponeses – mais ou menos como quando Trump manda um sinal de positivo para os apoiadores do QAnon em seus comícios – e ele realizou todas as fantasias deles, lhes dizendo que ele iria implementar todas as suas demandas e até mesmo assinou cartas régias para esse efeito. Os camponeses satisfeitos voltaram para casa com os olhos marejados, acreditando que uma nova era estava para começar.

O que teve início, em vez disso, foi um banho de sangue, com as tropas do rei indo atrás deles uma semana depois e os assassinando em suas camas em um massacre que durou vários dias.

E se você acha que as crianças de hoje são ruins, ouça um pouco do que saiu da boca do rei Ricardo, de 14 anos:

“Servos vocês foram e servos você permanecerão em sujeição, não da maneira como vocês foram submetidos até agora, mas de maneira incomparavelmente mais vil. Enquanto vivermos e governarmos pela graça de Deus sobre este reino, usaremos nossa força, bom senso e propriedade para tratar de garantir que sua escravidão seja um exemplo para a posteridade e para que aqueles que vivem hoje e no futuro, que possam ser como vocês, possam ter sempre diante de seus olhos, como num espelho, a vossa miséria e motivos para vos amaldiçoar e para ter medo de fazer coisas como as que fizestes”.

Isso sim é consciência de classe de elite.

Portanto, apesar de terem uma visão de longo prazo, de ter táticas inteligentes no curto prazo, de vantagens táticas e planos realmente bem-sucedidos, o simples fato de não entenderem os interesses materiais do Rei e de não saber de qual lado ele ficaria, condenou a rebelião.

E esta é uma das razões pelas quais passei algum tempo criticando os artigos de Graeber e Wengrow sobre hierarquia e igualdade da última vez, e a razão pela qual entrarei em mais detalhes criticando essas coisas no próximo episódio de perguntas e respostas – porque a tese idealista subjacente aos artigos deles nos rouba a capacidade de focar nas condições e no contexto em que lutamos. Isso nos torna mais propensos a cometer erros tolos, como fizeram os camponeses e como fez o pessoal do Occupy Wall Street em 2011, quando eles tinham todo esse poder de alavancagem e a opinião pública do seu lado – e então eles simplesmente estragaram tudo porque se recusaram a fazer qualquer exigência com base em algumas teorias bem tolas, enraizadas em uma completa falta de compreensão de como as mudanças são feitas e em como funciona a política.

Efeitos posteriores: quando o poder de barganha funciona por conta própria

Mas ainda tem mais o que comentar na história dos camponeses. Apesar de terem sido massacrados, e apesar da promessa do rei de tornar a vida deles e de seus descendentes um inferno por toda a eternidade, na realidade a vida melhorou para os camponeses nas décadas seguintes. Independentemente do ódio do rei e da nobreza, o fato é que as condições materiais que deram origem ao aumento de poder dos camponeses, a escassez de mão de obra, ainda estava lá, e assim os camponeses derrotados ainda tinham uma vantagem natural na capacidade de barganha, mesmo que eles tivessem perdido a vantagem extra que haviam obtido por meio da organização e por meio dos seus ataques direcionados, etc. Assim, os salários continuaram subindo, e as taxas sobre os grãos e outras obrigações onerosas continuaram caindo.

Ainda por cima, ao se organizarem com sucesso a ponto de quase derrubarem a monarquia por completo, os camponeses colocaram nas elites o temor de que isso poderia acontecer novamente se os camponeses fossem provocados demais.

Assim, enquanto um dos gatilhos da rebelião havia sido um imposto eleitoral, em 1382 um novo imposto eleitoral foi aprovado pelo parlamento, mas desta vez apenas para os proprietários de terras. Em 1390, as tentativas de criação de leis de salário máximo foram abandonadas.

E em 1430, a condição que prendia os servos às terras de seu senhor específico foi abolida.

Então, mesmo que os rebeldes de 1381 tenham metido os pés pelas mãos e deixado o rei matá-los, e que seu objetivo de uma república livre de comunas tenha sido esmagado, não obstante, de qualquer maneira eles conseguiram grande parte do que queriam, com o passar do tempo.

A revolução espanhola

550 anos depois, outro grupo de camponeses unidos com trabalhadores urbanos teve outra revolta, com objetivos semelhantes aos dos camponeses ingleses – derrubar a elite dominante e estabelecer uma ordem de comunas livres com propriedade em comum para o benefício de todos.

Nesse caso, as elites dominantes eram os empresários urbanos, os proprietários rurais e o Estado que impunha a dominação deles. Ao contrário dos camponeses ingleses de 1381, estes camponeses e trabalhadores urbanos tinham uma compreensão muito melhor sobre seu sistema político – e, como resultado, a revolução deles foi bem-sucedida – pelo menos por um tempo.

A revolução anarquista espanhola, que aconteceu durante a Guerra Civil de 1936-1939 naquele país, foi na minha opinião um dos episódios mais importantes da história da humanidade. Ali, pela primeira vez no mundo industrializado, as pessoas substituíram com sucesso as hierarquias políticas, econômicas e culturais existentes da época, por um sistema de democracia radical, igualdade econômica e até mesmo um alto grau de igualdade de gênero – o que é chocante, visto que a Espanha na década de 1930 era uma tradicional cultura católica patriarcal tanto para os membros das elites quanto para os camponeses e trabalhadores urbanos.

Enquanto outros falharam repetidamente, os revolucionários espanhóis realmente alcançaram o sonho supostamente impossível de estabelecer uma sociedade dirigida por seu próprio povo sem capitalismo, mas também sem um poder estatal opressor impondo a igualdade – em outras palavras, socialismo sem Estado, ou seja, socialismo libertário ou comunismo libertário.

E, apesar disso (ou melhor, por causa disso) – é também um dos episódios mais negligenciados da história da humanidade.

Do final da guerra até a década de 1970 quase nada foi publicado sobre o evento na academia, no jornalismo popular ou na literatura popular. Mesmo durante a guerra, não houve muita discussão sobre ela fora da Espanha, embora George Orwell, que lutou em uma das milícias socialistas, tenha escrito um livro sobre isso chamado Homenagem à  Catalunha.

Ainda hoje, se você pesquisar a Guerra Civil Espanhola, muitas vezes não verá a revolução anarquista sendo mencionada, ou então verá sendo mencionada apenas de passagem. E a menos que você esteja entre a pequena porcentagem de pessoas envolvidas com política anarquista ou com socialismo radical, provavelmente não deve saber nada sobre o evento.

No contexto da Guerra Fria havia a desigualdade política e econômica capitalista sendo justificada pela ideia de que a única alternativa seria a ditadura de estilo soviético, e do outro lado havia economias estatais socialistas, justificando suas ditaduras como a única forma de evitar as desigualdades econômicas, raciais, de gênero e coloniais do mundo capitalista.

Assim, não havia muitas pessoas na mídia capitalista privada com fins lucrativos ou na mídia estatais controladas por partidos comunistas ansiosas para que as pessoas soubessem que a base fundamental para seus respectivos sistemas econômicos e políticos opressivos simplesmente não era verdade – que na verdade era possível ter liberdade e igualdade ao mesmo tempo.

Só que na Espanha, os socialistas libertários (também conhecidos como anarquistas) vinham fazendo proselitismo e organizando trabalhadores e camponeses desde a década de 1870. E, ao contrário do socialismo marxista, que tinha maior apelo principalmente para intelectuais e trabalhadores urbanos do de para camponeses – já que os marxistas tendiam a enxergar os camponeses como uma força retrógrada, anti-revolucionária – entre os espanhóis a ala libertária do socialismo tinha apoio maciço tanto entre os camponeses quanto entre trabalhadores assalariados. E, embora houvesse intelectuais urbanos no movimento anarquista, eles não o dominavam, como tendiam a fazer nos partidos marxistas.

Uma das grandes razões materiais para a popularidade do socialismo anarquista entre os camponeses espanhóis era que, ao contrário de outros países, onde os camponeses eram pequenos proprietários de terras, as terras agrícolas espanholas ainda eram organizadas em latifúndios, um resquício dos tempos da Roma Antiga, onde uma poderosa aristocracia possuía enormes faixas de terra cultivadas por lavradores arrendatários.

Portanto, em termos marxistas, os camponeses espanhóis eram como um proletariado rural – ou seja, pessoas que não possuíam nada além de sua força de trabalho e algumas posses pessoais, e que teriam o mínimo a perder e o máximo a ganhar com uma reorganização da sociedade segundo linhas socialistas.

No início do século 20, os anarquistas haviam se tornado a principal força no movimento trabalhista em muitas partes do país e organizavam grandes sindicatos trabalhistas com milhões de membros, que não organizavam apenas trabalhadores urbanos, mas também camponeses.

Ao contrário dos tipos de sindicatos trabalhistas com os quais estamos familiarizados atualmente, cujas ambições se limitam a lutar por mais direitos trabalhistas e salários mais altos, esses sindicatos socialistas libertários ou anarquistas faziam isso, mas também tinham o objetivo de longo prazo de assumir a indústria e a sociedade por completo – para substituir os proprietários capitalistas e o Estado ao mesmo tempo, e fazer com que os trabalhadores e camponeses administrem a sociedade de uma forma diretamente democrática – uma forma de governo chamada de anarco-sindicalismo.

E ironicamente, mesmo que seus tipos leninistas bolcheviques adorem criticar o anarquismo por não acreditar em organização, um sindicato anarco-sindicalista é um pouco como um partido leninista, exceto que é dirigido de baixo para cima, não de cima para baixo, e que também se trata de uma organização real de trabalhismo, não só um partido visando apoderar-se do Estado.

Em 1931, o rei da Espanha autorizou eleições democráticas para decidir o próximo governo, e os eleitores escolheram de maneira esmagadora por partidos republicanos e socialistas moderados que queriam se livrar da monarquia e estabelecer uma república. Então, em 1936, uma coalizão de esquerda foi eleita para governar e, em resposta, oficiais do exército de direita liderados por Francisco Franco orquestraram um golpe para restaurar o poder às tradicionais elites espanholas, latifundiários, igreja e grandes empresários.

O golpe teve sucesso nas partes mais conservadoras da Espanha, mas no resto do país, capitalistas democráticos, socialistas e anarquistas conseguiram impedir a tomada conservadora. Eles formaram uma coalizão, geralmente chamada de lado Republicano da guerra civil espanhola, mas chamá-la de “lado republicano” não era tão adequado, pois os anarquistas não estavam interessados em estabelecer uma república. Eles queriam uma federação de comunas autogovernadas, de maneira muito semelhante aos camponeses de 1381.

E tal qual os camponeses de 1381 se aproveitaram do fato de que o exército inglês estava distante, na França, as organizações anarquistas espanholas aproveitaram-se do fracassado golpe fascista, da guerra civil e da perda de legitimidade e de autoridade do Estado espanhol para lançar sua revolução.

Trabalhadores nas cidades lançaram greves e tomaram fábricas de proprietários fascistas que fugiram, ou que foram assassinados ou exilados. Nessas empresas recém-assumidas pelos trabalhadores, eles elegiam sua administração e faziam reuniões para definir seus próprios horários, salários e preços. E como não havia ninguém sugando lucro no topo, eles em geral conseguiam reduzir suas horas de trabalho, aumentar seus salários e baixar os preços ao mesmo tempo – e este é frequentemente o caso quando empresas privadas se tornam cooperativas de trabalhadores. Você pode assistir um filme de 2004 chamado “La Toma”, onde trabalhadores argentinos ocuparam fábricas abandonadas por seus donos e tiveram resultados semelhantes.

De qualquer forma, os camponeses arrendatários espanhóis fizeram o mesmo com as terras agrícolas, confiscando e redistribuindo as terras dos aristocratas a todos os agricultores sem-terra e os coletivizando em comunas. Os lavradores que quisessem possuir suas novas terras individualmente foram autorizados a fazê-lo, desde que não empregassem trabalho assalariado, pois se assume que a abolição de qualquer forma de trabalho dependente é o objetivo do socialismo. No entanto, pouquíssimas pessoas escolhiam a propriedade individual, pois as cooperativas e comunas ofereciam enormes vantagens de compartilhamento de trabalho de recursos.

Desta forma, trabalhadores e camponeses conseguiram assumir diretamente o controle de cerca de 50% das terras dentro da zona republicana da Espanha, com 7 milhões de pessoas participando do autogoverno – números que subiam para 75% na região da Catalunha, que inclui a grande cidade de Barcelona, onde os trabalhadores dirigiam a maior parte da indústria, com sindicatos abrangendo desde pequenas barbearias e padarias até fábricas têxteis, fábricas de maquinário, e chegando até o sistema de telecomunicações, trens e ambulâncias.

E enquanto os governos socialistas estatais como a União Soviética muitas vezes faziam com que as cidades praticamente declarassem guerra aos camponeses, na Espanha as cidades e as áreas rurais cooperavam por meio de seus sindicatos e outras organizações anarquistas. Essas organizações também formaram bancos de propriedade e controle coletivos, onde todas essas comunas, cooperativas e coletivos juntavam seu dinheiro e retiravam recursos uns dos outros na forma de produtos e serviços ou compravam suprimentos do exterior com dinheiro.

Implementaram alguns benefícios de bem-estar social pela primeira vez, como seguro-desemprego e afastamento remunerado por doença, e distribuíram bens e serviços aos trabalhadores e suas famílias com base nas horas trabalhadas ou conforme a necessidade para quem não podia trabalhar – e, em algumas áreas agrícolas, até mesmo apenas de acordo com a demanda.

No início, a produção foi um tanto caótica, já que os trabalhadores não tinham experiência em administrar a si mesmos ou em fazer sua contabilidade. Enquanto isso, alguns locais de trabalho coletivizados mais ricos agiam com base em seus interesses individuais, como as cooperativas com fins lucrativos fazem no capitalismo – no entanto, os trabalhadores aprenderam rapidamente a administrar a si mesmos e, em poucas semanas, as indústrias estavam cooperando entre si por meio de organizações anarquistas mais amplas e operando com base nas necessidades de toda a sociedade e não apenas de comunas individuais em competição umas com as outras.

Com o passar do tempo, mais e mais lojas, fábricas e indústrias inteiras foram coletivizadas, com trabalhadores mais experientes ensinando a administração e a contabilidade aos recém-coletivizados. Trabalhadores e proprietários de pequenas lojas, como padarias e outros pequenos negócios, muitas vezes dissolviam voluntariamente seus negócios em instalações de produção mais amplas para aumentar a produção, a receita e as condições de trabalho. Em poucos meses, a produtividade industrial havia dobrado em quase todos os lugares controlados pelos anarquistas, e a produção agrícola havia aumentado de 30 a 50%.

E o autogoverno anarquista não se limitava apenas aos locais de trabalho, fazendas ou à esfera econômica. Órgãos deliberativos locais, regionais e federais foram formados, onde as pessoas podiam discutir, votar e formular políticas gerais. As decisões dos órgãos inferiores eram enviadas a um corpo executivo cujo trabalho era colocar em ação o que os órgãos inferiores quisessem que eles fizessem. Mais ou menos como no Occupy Wall Street, mas com a diferença de que realmente se apresentavam exigências e se faziam coisas, ao invés de mera “masturbação”.

Além disso, para defender a sua revolução das forças fascistas que tentavam restaurar a ordem tradicional, eles formaram milícias armadas, que também seguiam princípios democráticos socialistas. Os soldados elegiam os seus comandantes que possuiam autoridade, mas estavam sujeitos à revogação por parte de seus subordinados. Homens e mulheres lutavam juntos ou em unidades separadas. As mulheres até mesmo comandavam algumas unidades – novamente, algo enorme para uma sociedade como a espanhola na década de 1930.

Apesar da falta de experiência e de uma grave falta de recursos – por exemplo, essas milícias inicialmente careciam de itens básicos como fuzis funcionais – elas acabaram sendo uma força de combate eficaz, chocando os seus próprios aliados do lado republicano.

Este estado de coisas socialista e revolucionário continuou com sucesso crescente em diferentes partes do país por um tempo que variou entre 9 meses a 3 anos.

Por fim, entretanto, o lado republicano perdeu a guerra civil e Franco tornou-se ditador da Espanha até sua morte em 1975.

Mas não foram as forças de Franco que acabaram com a revolução anarquista – ironicamente, foram os supostos comunistas do lado republicano, que eram controlados pela União Soviética, que esmagaram a revolução em troca de ajuda e armas soviéticas.

Por que eles fariam isso? Em teoria, os anarquistas estavam realizando todos os objetivos que a União Soviética almejava. A justificativa teórica para o domínio do partido comunista da URSS era que ele deveria guiar o país através da industrialização para aumentar a capacidade produtiva o suficiente para que houvesse abundância material suficiente para que o comunismo pudesse existir – e, uma vez que isso acontecesse, supostamente o Estado deveria se tornar obsoleto e haveria apenas um mundo de comunas e cooperativas livremente associadas. Era exatamente isso o que os anarquistas estavam colocando em prática diretamente, sem ter de passar por nenhuma fase intermediária de ditadura.

Mas é claro, o fato de que os anarquistas estavam democraticamente colocando diretamente em prática o socialismo controlado pelos trabalhadores, sem qualquer ditadura  partidária ou burocrática, representava uma ameaça existencial à elite soviética e, portanto, o socialismo anarquista não podia ser tolerado.

E como os anarquistas e outras forças antifascistas não tinham os recursos necessários para vencer a guerra sozinhos, tiveram de aceitar estar em coligação com os comunistas espanhóis, que foram cada vez mais dominando o lado republicano, que se tornava crescentemente dependente da ajuda soviética para lutar a guerra. Com o tempo, mais e mais zonas anarquistas tiveram que ceder às exigências dos comunistas para desmantelar as comunas agrícolas, devolver o controle dos locais de trabalho aos seus antigos proprietários, ou então para se submeter a chefes e gerentes nomeados pelo governo e para sujeitar zonas anteriormente anarquistas ao controle governamental de cima para baixo.

Assim, ironicamente, os comunistas desmantelaram todo o projeto socialista, em nome do socialismo. Alguns anarquistas queriam enfrentar os comunistas, mas isso teria levado ao rápido colapso da aliança republicana, e basicamente, os anarquistas simplesmente não estavam em uma posição de barganha na qual pudessem recusar.

Como resultado do desmantelamento de sua democracia, os soldados, trabalhadores e camponeses anarquistas perderam o zelo, dedicação e investimento emocional no esforço de guerra. Apesar de estarem melhor equipados, a produção desacelerou e os atos de bravura militar ocorriam menos. Alguns historiadores argumentam que esta teria sido uma das principais causas da derrota republicana.

De qualquer maneira, para os soviéticos que controlavam a coalizão republicana, era melhor perder a Espanha do que o anarquismo se tornar um potencial modelo de sucesso para o socialismo em todo o mundo.

Embalando para viagem

Nos últimos episódios, vimos que as diferentes situações em que as pessoas se encontram – em termos materiais, ambientais, práticas – resultam em diferentes pessoas tendo diferentes níveis de poder de barganha, o que resulta em sociedades hierárquicas ou igualitárias – e neste episódio vimos que diferentes tipos de condições são mais favoráveis ou menos favoráveis à agência humana e à mudança social em larga escala. Quando as condições mudam rápida ou frequentemente, o potencial equilíbrio de poder geralmente muda sem que as pessoas saibam, e com conhecimento e organização, as pessoas podem se unir para moderar ou mesmo eliminar as hierarquias existentes.

No próximo episódio, vamos observar uma das principais forças da hierarquia de dominação no nosso mundo atual, que é o regime específico de direitos de propriedade que é aplicado em vários graus por todos os Estados do mundo capitalista – porque é o simples fato de que uma pessoa pode possuir ou controlar recursos dos quais outras pessoas dependem para viver, que é o que torna a hierarquia de dominação possível em primeiro lugar. Portanto, vamos analisar diferentes conceitos de propriedade em diferentes sociedades por todo o mundo e ao longo da História, e compará-los com o regime de direitos de propriedade sob o qual vivemos hoje, que é meio que o fundamento moral do nosso sistema econômico, e que está tão profundamente enraizado na nossa cultura e em nossas mentes, que a maioria de nós nem consegue imaginar um conceito diferente de propriedade.

Até a próxima, nos vemos por aí!


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Ember & Ember 1971 – The Conditions Favoring Matrilocal Versus Patrilocal Residence, American Anthropologist, Vol. 73, N° 3

Pasternak 1997 – Family and Household: Who Lives Where, Why Does It Vary, and Why Is It Important?in Ember & Ember (eds.) 1995 – Cross-Cultural Research for Social Science

Abigail Higgins 2019 – American Women Fought for Suffrage for 70 Years. It Took WWI to Finally Achieve It, history.com

Sally Roesch Wagner 2015, How Indigenous Women Inspired The Feminist Movement, Bust Magazine

Cathleen D. Cahill / Sarah Deer 2020 – In 1920, Native Women Sought the Vote. Here’s What’s Next, New York Times

Annette McDermott 2018 – Did World War II Launch the Civil Rights Movement?, history.com

Paul Foot 1981 – “This Bright Day of Summer”: The Peasants’ Revolt of 1381; see also the lively original audio version of this speech

Mark O’Brien 2004 – When Adam Delved and Eve Span, a History of the English Peasants’ Revolt of 1381

Sam Dolgoff 1973 – Anarchist Collectives

Thomas Kuhn 1962/2012 – The Structure of Scientific Revolutions

The Take 2004 Occupy, Resist, Produce! (video on the worker takeover of factories in Argentina)

Michael Albert 2005 – Argentine Self-Management  (see also his Revolution Z podcast and other writings about how  the Argentinian workers learned to prevent new elites from rising)

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